A história de duas gerações de advogados negros | Análise
Análise

A história de duas gerações de advogados negros

Por Douglas Ribas Jr., sócio do Douglas Ribas Advogados Associados

27 de November de 2020 10h13

Em uma manhã de segunda-feira, nos idos da década de 50, o adolescente bateu à porta da empresa localizada no Centro de São Paulo. Sob seu braço o jornal da véspera, com a seção dos classificados de empregos repleta de oportunidades.

A porta não foi aberta, somente a portinhola, pequena abertura retangular na sua metade superior, dotada de grades verticais. Os olhares do recrutador e do aspirante a office-boy se cruzaram. Veio o veredicto: NÃO CONTRATAMOS NEGROS!

O jovem era o DR como carinhosamente chamamos meu pai, Douglas Ribas, no escritório. Essa é uma das passagens contadas por ele para ilustrar a difícil caminhada do menino pobre, filho de um pintor de paredes e de uma tecelã, que teve a infância sofrida, trabalhando desde os nove anos de idade.

Ainda na pré-adolescência, estudioso, percebeu que só havia uma ferramenta capaz de furar o bloqueio social imposto pela cor da pele: a educação! Sua dedicação aos estudos o destacava dos demais. Essa percepção o motivou a se empenhar com afinco, a despeito das dificuldades vividas em razão de sua origem.

Aquele estudante esforçado encontrou inúmeros apoiadores ao longo da sua formação. Teve o incentivo daqueles que, independentemente da sua etnia, religião, classe social ou nacionalidade, reconheceram seu talento e contribuíram para que se transformasse em um profissional brilhante, que jamais se deixou vencer pelas poucas atitudes racistas que o atingiram.

Frequentou a escola pública e aos 20 anos já era poliglota. Boa parte do seu aprendizado de idiomas ocorreu por meio de bolsas de estudo. Não raramente era o melhor da sala. A vida escolar bem reflete o quanto tivemos realidades, formações e experiências distintas. Graças ao esforço dele, ao valor que sempre atribuiu ao estudo, tive oportunidade de frequentar os melhores colégios de São Paulo e cursar Direito em uma das melhores faculdades do país.

Foi dele a insistência para que eu estudasse inglês aos sete anos de idade. Por admirar a beleza da sua fluência no francês, quando completei 16 anos decidi me matricular na mesma tradicional escola onde ele obteve o certificado de proficiência antes dos 23. Nunca cogitei fazer outro curso que não o Direito, o último curso superior concluído pelo DR.

Com sorriso fácil, dotado de simpatia e carisma ímpares, transpôs para o trabalho a metodologia que o destacou nos estudos: dedicação, disciplina, organização, seriedade, uma disposição única em devorar jornais e livros, cumprir metas e superar expectativas vieram a forjar um profissional bem-sucedido.

Enquanto jovem advogado com escritório próprio, devido ao conhecimento de idiomas, contabilidade e comércio exterior, teve portas abertas para que se tornasse alto executivo de empresa multinacional, onde fez carreira por décadas, até se aposentar como CEO e presidente do grupo econômico na América do Sul.

Pendurou as chuteiras junto ao mundo corporativo na sua melhor fase, deixando números lendários nos livros contábeis das empresas sob seu comando. Aos 62 anos de idade, dotado de notável experiência e singular saber jurídico, retornou à advocacia.

Já no meu caso, nunca tive problema com a inegável pressão e expectativas criadas diante do Júnior de uma versão tão capacitada de um self made man. Nutrindo enorme orgulho e gratidão, não fiz mais do que minha obrigação ao bem abraçar as oportunidades que o DR me proporcionou. Incorporei seus valores. Estudei muito e fiz questão de começar a estagiar cedo para adquirir prática forense. Respirava o Direito e ao final da faculdade, honrado, declinei convites para monitoria junto a queridos professores de Penal e Processo Civil.

No mesmo ano em que me formei, fui aprovado no exame da OAB, no entanto, acreditava que se me tornasse magistrado poderia imergir no Direito, minha paixão. Após três meses de formado, venci com tranquilidade a primeira fase do concurso. Durante boa parte do ano cursei a Escola Paulista da Magistratura, logrando aprovação na desgastante segunda etapa do Concurso de Ingresso à Magistratura. Depois de meses de concurso, fui reprovado no exame oral.

Esses fatos aconteceram há mais de 25 anos e, embora naquela época, muito se falasse sobre preconceito racial para ingresso na magistratura, inclusive com especulações de que havia racismo por parte da presidência do TJSP, jamais aceitei que isso ocorreu. Atribuo minha reprovação à falta de maturidade, ainda não havia advogado e, admito, meu desempenho no exame oral foi aquém do esperado.

Menos de 15 dias do resultado do exame oral da magistratura recebi proposta para advogar. Remuneração fixa mais a sedutora participação de 40% sobre a minha produtividade. Liberdade de horário para que pudesse estudar. Casos em diversas áreas do Direito e a combinação de que seria algo temporário, somente até a aprovação no concurso, o que imaginava ocorreria ao final do ano. A rotina como advogado em escritório repleto de bons clientes, causas interessantes e a conquista da independência financeira afastaram meu desejo de ingressar na magistratura.

Durante quase cinco anos intensos, no mesmo escritório, pratiquei advocacia abrangente, no ritmo insano dos recém-formados. Com o tempo, passei a fazer a gestão de todo o contencioso, exercendo também atividade consultiva. Transitei por várias áreas do Direito. Foi um tremendo aprendizado. Tive a oportunidade de ficar como intern alguns meses em escritórios parceiros nos Estados Unidos, ocasião em que, além de um roadshow, pude aprimorar o inglês jurídico e corporativo.

Concomitante à aposentadoria do DR na jornada como alto executivo de multinacional, me desliguei do escritório. Quando informei a ele que precisava de uma pausa para me organizar, decidindo qual passo daria na carreira, ele sugeriu que ficasse algum tempo sob o mesmo teto que ele, ajudando na sua retomada como advogado com escritório próprio.

Surgia a Douglas Ribas Advogados Associados, empresa familiar cuja estruturação não foi vertical. Nosso escritório foi criado horizontalmente, somando-se nossas vivências e experiências. Assim seguimos até hoje, com erros, acertos, mas sempre na certeza de que a educação, o esforço e a dedicação podem ultrapassar barreiras.

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