A cláusula de "não litigar" nos planos de recuperação judicial | Análise
Análise

A cláusula de "não litigar" nos planos de recuperação judicial

Por Gledson Marques de Campos, advogado do Trench Rossi Watanabe

16 de September 17h17

Recentemente, planos de recuperação judicial têm estabelecido vantagens para credores que assumem o compromisso de não litigar com o devedor.

Embora o tema remonte ao direito romano, sendo, portanto, um dos mais antigos negócios jurídicos do qual se tem conhecimento, sua aplicação contemporânea no Brasil ainda é controversa, seja porque são escassos os estudos realizados no país, seja porque o tema apenas despertou interesse por parte da doutrina a partir do CPC/2015, cujo art. 190 estabeleceu a possibilidade de negócios jurídicos processuais atípicos.

É com o propósito de analisar a validade (ou não) desse compromisso que, nas palavras do professor Fredie Didier Jr., significa verdadeiro "armistício", se insere o presente artigo.

A controvérsia acerca do pactum de non petendo reside até mesmo quanto à sua natureza jurídica (de direito material ou processual).  No direito romano, essa cláusula significava que o credor se comprometia a não exigir a dívida do devedor, possuindo um sentido remissório. Discutia -se se esse pacto teria o efeito de extinguir o crédito ou não. Embora pareça que o entendimento majoritári o caminhe no sentido de que não haveria essa extinção ,2 quer parecer que h avia implicações no plano material, porque o devedor que cumpri sse a obrigação na vigência do pacto era dado poder reaver o valor pago .

Talvez a controvérsia exista em decorrência da falta de determinação precisa do objeto do pacto de non petendo ou da promessa de não processar.3 É necessário estabelecer se o objeto desse pacto é o direito subjetivo, a pretensão de direito material ou apenas a pretensão de direito processual.4 Noutros termos, é necessário determinar se essa promessa traduz renúncia ao direito material ou se é uma simples renúncia ao direito de ação (ou não exercício desse direito de ação). 

Quer-nos parecer que o objeto da promessa está limitado à pretensão processual, mantendose incólume a pretensão de direito material.5 Por meio dessa previsão contratual, as partes do contrato se comprometem a não exigir o seu cumprimento em sede jurisdicional (seja no juízo estatal ou arbitral), de modo que subsistem todas as pretensões que podem ser exercidas fora do âmbito jurisdicional (tal como ocorre com direitos subjetivos não dotados de pretensão ou cuja pretensão foi fulminada). 

Cuida-se de um negócio jurídico que se relaciona com a exigibilidade do direito, portanto com a pretensão. A promessa de não litigar se restringe à pretensão processual. Por meio dela, os contratantes pactuam que não exigirão, em sede jurisdicional, o cumprimento do contrato, sendo certo que fica mantido, de forma hígida, o direito material e até mesmo a possibilidade de exigir a pretensão fora do processo, valendo-se até mesmo de outros meios de pressão. 

E é justamente em função dessa natureza processual que a promessa de não litigar deve ter limitação temporal (inferior ao prazo prescricional ou decadencial), sob pena de desvirtuar o instituto e embutir uma renúncia ao próprio direito material (o que é perfeitamente possível desde que pelo meio adequado). Não se trata, evidentemente, de negar remissão da dívida ou, até mesmo, renúncia à prescrição (quando já verificada). Contudo, não se pode descaracterizar a promessa de não litigar para que ela encerre, por meio transverso, disposição sobre a pretensão de direito material ou acerca do próprio direito subjetivo.

Enfim, a promessa de não litigar ou pactum de non petendo gera a obrigação de não agir perante autoridade jurisdicional pelo prazo de vigência desse pacto. Trata-se de uma obrigação de não fazer, consistente na obrigação de não propor demanda (o que inclui a reconvenção ou pedido contraposto).6

De modo geral, os que sustentam a invalidade da cláusula de não litigar o fazem com base no art. 5.º, XXXV, da CF, que encerra o princípio da reserva legal, segundo o qual: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". O direito de acesso ao Judiciário, ou da inafastabilidade do controle jurisdicional, foi previsto inicialmente na Constituição de 1946 e, a partir daí, foi repetido em todas as que sucederam. O artigo 3º do Código de Processo Civil repete essa mesma regra, reservando ao Estadojuiz o monopólio da jurisdição. 

A partir da leitura desses artigos, parte da doutrina sustenta que é nulo qualquer pactum de non petendo estipulado como cláusula segundo a qual os contratantes se comprometem a não recorrer ao Judiciário na hipótese de surgir algum litígio entre eles.7 Ocorre que a inafastabilidade prevista na Constituição Federal parece significar apenas que o legislador infraconstitucional está proibido de editar leis que restrinjam o direito de acesso ao Judiciário por parte do jurisdicionado.8

Ou seja, a proibição se dirige ao Poder Legislativo, que não pode suprimir, nem sequer por emenda constitucional, o direito de acesso ao Judiciário. O intuito do dispositivo é garantir ao particular o direito de ter lesão ou ameaça apreciada pelo Poder Judiciário. Aliás, mesmo sob o prisma literal, a norma constitucional se limita a proibir que o legislador exclua determinadas matérias ou sujeitos da apreciação do poder Judiciário, não sendo possível interpretá-la como limitação ao particular.

A partir da leitura do art. 5.º, XXXV, da CF, infere-se que não há obrigação do particular de submeter toda e qualquer controvérsia a um juiz estatal. Nada na redação da norma indica, por exemplo, que os direitos patrimoniais não possam ser objeto de transação ou, ainda que as partes não possam efetivamente restringir o seu direito.

A vedação não impede, por exemplo, que as partes submetam seu conflito à arbitragem, retirando-o da análise do Judiciário. E esse parece ter sido o entendimento do STF no acórdão SE 5.206-7, em que se discutiu a constitucionalidade da Lei de Arbitragem. Nesse julgamento, prevaleceu o entendimento de que a garantia de acesso ao Judiciário significa proibição ao legislador ordinário, de modo que as partes, desde que capazes e que a controvérsia envolva direitos patrimoniais disponíveis, são livres para submeter conflitos à arbitragem.

A garantia constitucional de acesso à jurisdição não impede que o particular e/ou o Estado busque(m) meios alternativos para a resolução de conflito, até mesmo como medida de preservar recursos. E, em decorrência dessa liberdade prevista na Constituição, a qual franqueia ao particular autonomia para gerir e dispor de seus direitos patrimoniais livres, o CPC passou a permitir, a partir de 2016, a celebração de negócios jurídicos processuais atípicos em processos relativos a direitos que admitam a autocomposição.

O plano de recuperação judicial 

O sistema de superação da crise estabelecido no procedimento de recuperação judicial tem natureza negocial,9 contando com supervisão judicial, porque é celebrado por duas partes: de um lado o devedor, que apresenta uma proposta de pagamento (plano de recuperação) e, por outro lado, todos os credores, que aprovarão ou não o plano de pagamento apresentado. O propósito da recuperação judicial (Lei 11.101/05, 47) é o de viabilizar a superação da crise pela empresa viável, salvaguardando-se, dessa forma, a geração de emprego, renda e riquezas.10 É nesse contexto que se insere o plano de recuperação e o dever de o devedor em recuperação judicial de buscar negociação com seus credores.

O plano de recuperação judicial consiste no principal instrumento da recuperação judicial, no qual estão indicadas todas as medidas que serão adotadas para o devedor superar as dificuldades que o fez pedir recuperação. O plano deve ser apresentado no prazo de sessenta dias, contados a partir da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, sob pena de convolação em falência (art. 73, II da Lei 11.101/05). O art. 53 da Lei 11.101/05 determina que o plano de recuperação contenha: i) indicação pormenorizada dos meios de recuperação a serem empregados; ii) demonstração da viabilidade econômica; e iii) laudo econômico-financeiro e de avaliação de ativos do devedor.

Os meios de recuperação estão enumerados no art. 50 da Lei 11.101/05, cujo rol é exemplificativo. Já a demonstração da viabilidade é ponto essencial, porque o devedor deve comprovar não apenas que o valor da empresa em funcionamento é maior do que o obtido com sua liquidação, como ainda que a continuidade satisfaz aos interesses envolvidos.

O plano deve indicar as medidas concretas que serão adotadas para a superação da dificuldade enfrentada, cotejando-as com a viabilidade econômica da empresa. Ao Judiciário e ao Ministério Público competem zelar para que o plano seja transparente, evitando-se assimetria de informações. Já se consolidou na jurisprudência o entendimento de que a análise por parte do Judiciário quanto ao plano se restringe à legalidade e à ausência de fraude, não se debruçando, por exemplo, sobre aspectos financeiros.

Até recentemente, apenas o devedor detinha a legitimidade para apresentar o plano de recuperação, de modo que alterações ao plano somente seriam incorporadas com o seu beneplácito (Lei 11.101/05, art. 56, § 3º). Com as alterações de 2020, houve um equilíbrio de forças, mitigando aquilo que se denominou "ditadura do devedor", sendo certo que, atualmente, há duas hipóteses em que credores podem apresentar plano de recuperação em substituição àquele do devedor. Na recuperação, devedor e seus credores fazem concessões mútuas, o que demonstra que o plano de recuperação é uma espécie de negócio jurídico.11 A particularidade envolvendo essas concessões consiste no fato de que se está diante de um processo coletivo, qual seja, o processo de recuperação judicial12 .

Trata-se de negócio jurídico plurilateral, porque, por meio da declaração de vontade de diversos sujeitos, a maioria decide pela produção de determinados efeitos jurídicos por eles pretendidos em prol de um interesse comum que, no caso, é a recuperação do devedor.13 E a liberdade de negociação é bastante ampla, eis que são poucos os limites estabelecidos pelo legislador. O primeiro desses limites está indicado no art. 50, § 1º, da Lei 11.101/05, segundo a supressão de garantia real ou a substituição em decorrência de alienação do bem está sujeita à aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.14

Já o § 2º desse mesmo art. 50 determina que, nos créditos em meda estrangeira, a variação cambial será conservada como parâmetro de indexação e só será afastada se o credor, titular do respectivo crédito, aprovar previsão diversa no plano de recuperação judicial. Por sua vez, o art. 54 da Lei 11.101/05 fixa prazos para pagamento de credores trabalhistas, quais sejam: (i) 30 (trinta) dias para pagamento dos créditos de natureza estritamente salarial, vencidos nos 3 (três) meses anteriores ao pedido de recuperação, limitados a 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador; (ii) 1 (um) ano para pagamento dos créditos decorrentes da legislação do trabalho ou de acidentes de trabalho. Esse último prazo poderá ser estendido em até 2 (dois) anos, desde que satisfeitos os requisitos previstos no 2º desse mesmo art. 54.

Como se infere, não são muitos os limites que a Lei 11.101/05 estabelece ao plano de recuperação judicial. Dessa forma, seja porque não há muito limite estabelecido pela lei, seja porque prevalece a natureza negocial, é lícito e natural que sejam ofertadas vantagens a comportamentos desejados e, exatamente nesse contexto, se insere a cláusula de não litigar.

A cláusula de não litigar na recuperação judicial O CPC/2015 tratou de incentivar a celebração de negócios jurídicos processuais. Tanto isso é verdade que estabeleceu uma regra geral que regula o negócio jurídico processual, fixando os seus requisitos de validade. A partir da leitura do art. 190 do CPC, tem-se que o negócio jurídico processual pode ser celebrado (i) por partes plenamente capazes (ii) em processos envolvendo direitos que admitam autocomposição. Quanto ao objeto, o negócio pode envolver ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Já o parágrafo único do art. 190 do CPC/2015 prevê o controle de legalidade do negócio jurídico, até mesmo de ofício. 

Por meio da promessa de não litigar, as partes estabelecem a impossibilidade de demandar em juízo. O objeto do pactum de non petendo está circunscrito à pretensão de direito processual - ou seja, o direito de demanda e não o de ação. 15 Aliás, a própria redação do art. 190 do CPC deixa muito claro que o negócio jurídico processual não atinge o direito material em si. Pois bem, o sistema de superação previsto na recuperação judicial tem natureza negocial, no qual o devedor apresenta uma proposta de pagamento aos seus credores (o plano de recuperação), cabendo a estes aprovarem, modificarem ou rejeitarem tal proposta.

Por se tratar de negócio jurídico, o plano pode ser analisado pelo prisma da existência, validade e eficácia. A análise da cláusula de non petendo se insere no contexto da validade. A validade é "qualidade que o negócio jurídico deve ter ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas ("ser regular). Validade é adjetivo com que se qualifica o negócio jurídico formado de acordo com as regras jurídicas"16 Um dos maiores motivos de invalidade do plano é a violação ao tratamento igualitário entre credores da mesma classe e que possuam interesses homogêneos em função da natureza do crédito. 

A ausência de regra expressa na Lei 11.101/05 que autorizasse a concessão de incentivos a credores que assumissem posição colaborativa fez com que, num primeiro momento, houvesse certa timidez nos planos quanto a essas "vantagens", cabendo aos Tribunais chancelar a criação de classes e a concessão dessas classes. Esse cenário, a Lei 11.112/20202, que alterou a Lei 11.101/05, permitiu a criação de subclasses de credor-parceiro para lhe atribuir tratamento diferenciado. 17 Tal autorização certamente decorreu da constatação de que a falta de colaboração de credores que são fornecedores de bens e serviços é fator preponderante para que o propósito almejado seja obtido.

Nesse contexto, parece haver uma incompatibilidade entre, de um lado, ser credor apoiador/colaborador e, por outro, litigar contra o devedor. Afinal, quem colabora não deve, em regra, litigar, exatamente porque ao fazê-lo não se colabora. Ora, a ausência de conflitos judiciais é fundamental para a estabilidade e previsibilidade. Os credores parceiros, ao concordarem em não litigar, criam um ambiente mais favorável para que o devedor possa implementar seu plano de recuperação eficazmente. Em contrapartida, esses credores recebem condições mais vantajosas. Não bastasse essa contradição a justificar a inclusão de cláusula de não litigar para credores apoiadores/colaboradores em planos de recuperação judicial, tem-se que, se é dado ao credor colaborador esperar tratamento diferenciado porque, exatamente, apoiador, é igualmente certo que o devedor tem a justa expectativa, precisamente porque o credor é colaborador e a ele foram oferecidas condições especiais, de receber como contrapartida o compromisso de não litigar.

E ainda sustentando a validade, as cláusulas de não litigar normalmente não representam renúncia absoluta à jurisdição estatal. A disposição estabelece limites para a obrigação de não litigar, de modo que é possível que os credores busquem o Poder Judiciário para as hipóteses não contempladas na cláusula. Por fim, há um derradeiro argumento. A cláusula de não litigar, normalmente, encerra uma faculdade, não sendo compulsória a uma classe de credores. O credor, com base em seus interesses, pode decidir livremente se aceita ou não a obrigação de não litigar. Se não aceitar, o credor tem a possibilidade de litigar contra o devedor (empresa em recuperação). Já se aceita, certamente haverá vantagem econômica. Trata-se, sobretudo, de uma opção econômica decorrente de negociação havida entre as partes, E já há posicionamento por parte do Poder Judiciário acerca dessa cláusula de não litigar. Por ocasião do exame de legalidade do plano de recuperação apresentado pela Oi S.A., o TJ/RJ18 entendeu ser válida e eficaz disposição do plano que continha obrigação de não indenizar, fazendo menção a recuperações judiciais anteriores, envolvendo a Abengoa, Aralco, Brico Bread Alimentos, Camera, Gabrielli Indústria e Comércio de Móveis, Grupo OAS, OGX, Wind Power.

Conclusão A cláusula de não litigar é uma ferramenta importante para a gestão de conflitos contratuais, promovendo a resolução amigável e eficiente das disputas. No entanto, sua validade depende do cumprimento de requisitos específicos, bem como do respeito aos princípios de boa-fé, legalidade e equilíbrio contratual. A análise cuidadosa e a redação clara destas cláusulas são essenciais para garantir sua eficácia e prevenir futuros litígios.

Gledson Marques de Campos ingressou no Trench Rossi Watanabe Advogados em 1998, como estagiário, e tornou-se sócio em 2012. Advogado de contencioso e consultivo cível e comercial, com experiência em questões envolvendo direito contratual, direito comercial e recuperação, falência e insolvência. É o sócio responsável por recuperação, falência e insolvência dentro do contencioso, atuando no grupo multidisciplinar de Recuperação e Restruturação de Dívida. Possui vasta experiência em litígios de alta complexidade, incluindo arbitragem e mediação, consultas e pré-contencioso.

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