Após prolongado trâmite processual, obtivemos decisão favorável em ação indenizatória que tramitou na 1ª Vara da Comarca de Araquari (processo nº 0302379-18.2016.8.24.0103/SC). A controvérsia envolvia a suposta responsabilidade da parte ré, nosso cliente, por negativa no fornecimento de crédito a um grupo empresarial do setor têxtil (parte autora).
O caso ilustra a relevância da boa-fé objetiva como princípio norteador das relações contratuais, sendo um instrumento poderoso para equilibrar direitos e deveres das partes. A decisão reafirma que a boa-fé objetiva não se limita a um ideal ético, mas é um elemento jurídico essencial para a estabilidade e previsibilidade nas negociações e nas relações contratuais delas decorrentes.
A ausência de transparência por parte da autora quanto à sua situação de pré-insolvência, aliada à inexistência de qualquer obrigação contratual expressa que impusesse à requerida o fornecimento de insumos e/ou de linha de crédito de forma incondicionada, evidencia um comportamento que desrespeita os princípios de equilíbrio e confiança inerentes às relações contratuais. Assim, a decisão reforça o papel da boa-fé objetiva como baliza ética e jurídica para evitar práticas abusivas e preservar a segurança das relações negociais.
O Caso em Análise
O julgamento considerou o princípio da Boa-Fé Objetiva, concluindo pela ausência de responsabilidade da parte ré. Em pormenores, a questão principal gira em torno de uma "escritura pública de abertura de crédito com garantia de terceiros por alienação fiduciária e outras avenças", firmada em 04/12/2015. A parte autora, baseada em suas unilaterais expectativas, alegava descumprimento das obrigações previstas nessa escritura e sustentava prejuízos de R$ 22.956.849,60, o que a teria levado a situação de insolvência e culminado em pedido de recuperação judicial.
Após detalhada instrução processual, que incluiu perícia econômica, sobreveio sentença reconhecendo, dentre outros, que a "expectativa criada pela parte autora com o documento firmado entre as partes foi, no mínimo, desleal com sua parceira comercial" e que "não é possível concluir que houve boa-fé contratual da autora ao postular sua recuperação judicial, após duas semanas da assinatura do instrumento".
Sem ingressar no detalhe das demais abundantes provas que levaram à improcedência da demanda, este artigo propõe analisar a conduta da autora sob o prisma do "princípio da boa-fé objetiva, que impõe às partes contratantes a obrigação de agirem com lealdade, honestidade e cooperação recíproca (TJSC, Apelação nº 5005409-22.2020.8.24.0002).
A Boa-Fé Objetiva no Direito Contratual Brasileiro
A boa-fé objetiva constitui um dos princípios mais relevantes no direito contratual, orientando as relações jurídicas com base em lealdade, honestidade e cooperação mútua. No Brasil, sua aplicação transcende a fase contratual, incidindo desde as tratativas preliminares até a fase pós-contratual.
Conforme lição da professora Judith Martins-Costa (A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação), a boa-fé objetiva, diferentemente do conceito subjetivo de estar de boa-fé, não se refere a um estado de fato que exclui culpa ou confere direitos específicos. Trata-se, na verdade, de um instituto jurídico que opera como critério de interpretação contratual e padrão de conduta exigível entre as partes. Embora seja difícil definir um conceito fechado de boa-fé objetiva, seu conteúdo emerge da análise concreta de situações nas quais os tribunais identificam violações desse padrão. Devido à heterogeneidade dessas situações, torna-se inviável estabelecer um conceito único e abrangente, o que exige uma abordagem funcional e um exame casuístico cuidadoso para compreender como esse princípio se aplica a cada caso específico [1].
Ainda, a boa-fé objetiva não se confunde com atribuição de função abnegatória ou altruísta ao contrato, e tampouco importa desprestígio da autonomia privada ou declínio do contrato. Não há, aqui, conceitos antagônicos ou excludentes (Paolo Gallo, Buona fede oggettiva e trasformazioni del contrato).
O Tu Quoque na Limitação de Direitos
Um dos aspectos mais importantes da decisão foi a aplicação instituto do tu quoque, derivação da Boa-Fé Objetiva, que impede o violador de uma norma de invocar essa mesma norma em benefício próprio.
Nas palavras de Luciano de Camargo Penteado (Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium) o tu quoque que, literalmente, significa "e tu também", em alusão à frase de Júlio César dita a Brutus. No direito contratual, o tu quoque busca evitar comportamentos contraditórios e a aplicação de "dois pesos e duas medidas" nas relações contratuais, promovendo coerência e equilíbrio no exercício de direitos subjetivos derivados do contrato. Pela figura do tu quoque objetiva-se a vedação de comportamentos contraditórios no interior de relações obrigacionais com referência a determinado direito subjetivo derivado do contrato.
A decisão em análise demonstra à perfeição a aplicação do instituto do tu quoque, derivado da boa-fé objetiva, com o fim de impedir contradições e abusos nas relações contratuais. Tal instituto foi utilizado para limitar a conduta da parte autora, que em suas negociações agiu de forma desleal ao ocultar sua real situação financeira e criar expectativas infundadas sobre obrigações inexistentes.
Ricardo Pinto da Rocha Neto é sócio fundador do escritório Abe Advogados.
Paula dos Santos Nogueira é advogada e coordenadora da área cível, do escritório Abe Advogados.
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