A Boa-Fé Objetiva: limites à responsabilidade contratual | Análise
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A Boa-Fé Objetiva: limites à responsabilidade contratual

Por Ricardo Pinto da Rocha Neto e Paula dos Santos Nogueira, respectivamente sócio fundador e coordenadora da área cível do escritório Abe Advogados

13 de December de 2024 14h12

Após prolongado trâmite processual, obtivemos decisão favorável em ação indenizatória que tramitou na 1ª Vara da Comarca de Araquari (processo nº 0302379-18.2016.8.24.0103/SC). A controvérsia envolvia a suposta responsabilidade da parte ré, nosso cliente, por negativa no fornecimento de crédito a um grupo empresarial do setor têxtil (parte autora).

O caso ilustra a relevância da boa-fé objetiva como princípio norteador das relações contratuais, sendo um instrumento poderoso para equilibrar direitos e deveres das partes. A decisão reafirma que a boa-fé objetiva não se limita a um ideal ético, mas é um elemento jurídico essencial para a estabilidade e previsibilidade nas negociações e nas relações contratuais delas decorrentes.

A ausência de transparência por parte da autora quanto à sua situação de pré-insolvência, aliada à inexistência de qualquer obrigação contratual expressa que impusesse à requerida o fornecimento de insumos e/ou de linha de crédito de forma incondicionada, evidencia um comportamento que desrespeita os princípios de equilíbrio e confiança inerentes às relações contratuais. Assim, a decisão reforça o papel da boa-fé objetiva como baliza ética e jurídica para evitar práticas abusivas e preservar a segurança das relações negociais.

O Caso em Análise

O julgamento considerou o princípio da Boa-Fé Objetiva, concluindo pela ausência de responsabilidade da parte ré. Em pormenores, a questão principal gira em torno de uma "escritura pública de abertura de crédito com garantia de terceiros por alienação fiduciária e outras avenças", firmada em 04/12/2015. A parte autora, baseada em suas unilaterais expectativas, alegava descumprimento das obrigações previstas nessa escritura e sustentava prejuízos de R$ 22.956.849,60, o que a teria levado a situação de insolvência e culminado em pedido de recuperação judicial.

Após detalhada instrução processual, que incluiu perícia econômica, sobreveio sentença reconhecendo, dentre outros, que a "expectativa criada pela parte autora com o documento firmado entre as partes foi, no mínimo, desleal com sua parceira comercial" e que "não é possível concluir que houve boa-fé contratual da autora ao postular sua recuperação judicial, após duas semanas da assinatura do instrumento".

Sem ingressar no detalhe das demais abundantes provas que levaram à improcedência da demanda, este artigo propõe analisar a conduta da autora sob o prisma do "princípio da boa-fé objetiva, que impõe às partes contratantes a obrigação de agirem com lealdade, honestidade e cooperação recíproca (TJSC, Apelação nº 5005409-22.2020.8.24.0002).

A Boa-Fé Objetiva no Direito Contratual Brasileiro

A boa-fé objetiva constitui um dos princípios mais relevantes no direito contratual, orientando as relações jurídicas com base em lealdade, honestidade e cooperação mútua. No Brasil, sua aplicação transcende a fase contratual, incidindo desde as tratativas preliminares até a fase pós-contratual.

Conforme lição da professora Judith Martins-Costa (A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação), a boa-fé objetiva, diferentemente do conceito subjetivo de estar de boa-fé, não se refere a um estado de fato que exclui culpa ou confere direitos específicos. Trata-se, na verdade, de um instituto jurídico que opera como critério de interpretação contratual e padrão de conduta exigível entre as partes. Embora seja difícil definir um conceito fechado de boa-fé objetiva, seu conteúdo emerge da análise concreta de situações nas quais os tribunais identificam violações desse padrão. Devido à heterogeneidade dessas situações, torna-se inviável estabelecer um conceito único e abrangente, o que exige uma abordagem funcional e um exame casuístico cuidadoso para compreender como esse princípio se aplica a cada caso específico [1].

Ainda, a boa-fé objetiva não se confunde com atribuição de função abnegatória ou altruísta ao contrato, e tampouco importa desprestígio da autonomia privada ou declínio do contrato. Não há, aqui, conceitos antagônicos ou excludentes (Paolo Gallo, Buona fede oggettiva e trasformazioni del contrato).

O Tu Quoque na Limitação de Direitos

Um dos aspectos mais importantes da decisão foi a aplicação instituto do tu quoque, derivação da Boa-Fé Objetiva, que impede o violador de uma norma de invocar essa mesma norma em benefício próprio.

Nas palavras de Luciano de Camargo Penteado (Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium) o tu quoque que, literalmente, significa "e tu também", em alusão à frase de Júlio César dita a Brutus. No direito contratual, o tu quoque busca evitar comportamentos contraditórios e a aplicação de "dois pesos e duas medidas" nas relações contratuais, promovendo coerência e equilíbrio no exercício de direitos subjetivos derivados do contrato. Pela figura do tu quoque objetiva-se a vedação de comportamentos contraditórios no interior de relações obrigacionais com referência a determinado direito subjetivo derivado do contrato.

A decisão em análise demonstra à perfeição a aplicação do instituto do tu quoque, derivado da boa-fé objetiva, com o fim de impedir contradições e abusos nas relações contratuais. Tal instituto foi utilizado para limitar a conduta da parte autora, que em suas negociações agiu de forma desleal ao ocultar sua real situação financeira e criar expectativas infundadas sobre obrigações inexistentes.

Ricardo Pinto da Rocha Neto é sócio fundador do escritório Abe Advogados.

Paula dos Santos Nogueira é advogada e coordenadora da área cível, do escritório Abe Advogados.

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