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A benção de Santo Ivo sobre a nova improbidade administrativa

Por Andrews França, associado sênior, e Bruno Burini, sócio; ambos do Trench Rossi Watanabe

16 de December de 2021 8h

Ivo Hélory de Kermartin, o Santo Ivo, é o padroeiro de todos os profissionais da área do Direito, mas especialmente dos advogados. No eterno embate democrático e republicano dos operadores, algumas vezes Santo Ivo ouve os advogados e uma norma é editada com redação que nitidamente os favorece. Isso aconteceu recentemente com a assim dita "reforma" da Lei de Improbidade Administrativa.

Em seu formato original, a lei tinha o nítido escopo de endurecer o combate aos atos ilícitos que contassem com a participação de agentes públicos, dando-lhes vantagem patrimonial se causassem danos ao Erário (inclusive mediante concessão de benefício tributário) ou violassem os princípios da administração pública, como honestidade, imparcialidade e legalidade.

O texto qualificou situações específicas para chamá-las de "muito graves" e estabeleceu consequências severas aos agentes, empresas e indivíduos envolvidos, que passavam pela reparação do dano: multas elevadas, impossibilidades de contratar com a administração pública ou receber benefícios, incentivos fiscais e creditícios, além da perda de direitos políticos.

O Ministério Público foi o maior responsável pela propositura dessas ações. Investigou fatos em inquéritos civis e propôs ações aos montes. Mas eles não são santos, são humanos, e ora acertavam a mão, ora exageravam na dose e chamavam de improbidade atos que pela generalidade da norma podiam ser enquadrados como tal, mas que muitas das vezes não carregavam a má-fé, intenção ou negligência deliberada que sempre foi necessária para configuração da improbidade.

O Ministério Público pesava a mão, os magistrados aceitavam o peso, e um prefeito que comprasse um caixão de madeira para enterrar um sujeito de baixa renda podia se tornar inelegível porque a compra não fora feita por meio de licitação.

A resposta chegou. Após um debate longo no Congresso, a Lei 14.320, em vigor desde outubro desse ano, veio em forma de reação à jurisprudência mais severa sobre improbidade. Propôs um combate às ditas injustiças criadas por conceitos genéricos sobre o que seriam atos ímprobos, por meio de uma análise consequencialista das condenações e da revisão de regras processuais; três pontos chamaram a atenção.

O primeiro: a nova lei fixa que apenas atos dolosos devem ser punidos. É uma clara reação às condenações impostas por ofensas aos princípios da administração pública, para as quais a jurisprudência estabeleceu que bastaria a existência do chamado "dolo genérico", conceito abstrato e tautológico que permitia a condenação porque os sujeitos envolvidos tinham "o dever de saber" que certas condutas ofendiam princípios da administração pública.

A prova da vontade do agente de cometer o ato ímprobo era irrelevante (afinal, sem coação absoluta, o ato seria em tese voluntário e, portanto, "doloso"). O MP entendeu a mensagem da jurisprudência e não propunha mais ações de improbidade sem mencionar o milagroso artigo 11, que tratava da ofensa a esses princípios, causando condenações sem prova da intenção de lesar. Daí a reação da lei em afirmar que apenas o dolo específico, "a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito" leva à improbidade.

O segundo: a redação original estabelecia que, quando houvesse ofensa aos princípios da administração pública — o que era bastante comum, por exemplo, em licitações —, o dano ao Erário era presumido. Mesmo condutas que não tinham causado danos provados nos autos poderiam levar à condenação por improbidade. A reação foi inserida no artigo 17-C, que expressamente afasta as presunções de dano.

O terceiro: proposta uma ação de improbidade, o Ministério Público não raramente pedia a concessão de medida liminar de bloqueio de patrimônio dos réus suficiente para suportar a condenação pecuniária. Porém, a prova da urgência era dispensada pela jurisprudência e, mesmo que o réu tivesse patrimônio para suportar a condenação e não estivesse dilapidando seus bens, a liminar era concedida.

E não havia necessariamente uma preocupação em limitar o bloqueio ao valor do potencial (e incerto) débito, valendo o que o Ministério Público colocasse na petição inicial. Se o bloqueio fosse a maior, era necessário petição, sorte e reza forte para obter o desbloqueio. Agora, a urgência precisa ser provada.

Contudo, como cautela, água benta e canja de galinha não fazem mal a ninguém, a norma editada pelo Congresso não será indiferente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Todo advogado versado nas cortes superiores conhece alguns dogmas: I) existe a Lei do Congresso e existe a interpretação dada à lei pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), sendo que nem sempre essas ideias conversam; II) quem tem a voz final no caso concreto é o Poder Judiciário, em especial o STJ e o STF; e, principalmente, III) STJ e STF gostam de julgar improbidades no mérito, principalmente em favor do Ministério Público.

Rezaram para Santo Ivo, porém, esqueceram que Ele é patrono dos advogados, mas também de todos os profissionais do Direito, e pode ouvir as preces do Ministério Público e também de magistrados, inclusive os egressos do Parquet, que estão descontentes e vão reagir. Ninguém se espantará com decisões que não respeitarem a literalidade da norma. E se eles não respeitarem, a sociedade vai reclamar para quem? Para o Papa?

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