A PRIMEIRA ADVOGADA DO BRASIL FOI UMA MULHER NEGRA
"A advocacia não é profissão para covardes."
A frase, célebre na academia do direito, nos fóruns, nos tribunais, e até inscrita em várias sedes físicas das Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil país afora, a do Pará inclusa, é de autoria do advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto.
Em uma análise imediatista e superficial, podemos dizer que seu significado perpassa pela ideia de enfrentamento a qualquer custo, de firme justaposição contra quaisquer contendas, de que, uma vez posicionado em seu entendimento, a advocacia deste não abra mão.
Mas, também e principalmente, como pressuposto de que cabe a esta profissão a defesa das liberdades, dos direitos humanos, de uma sociedade justa e igualitária e, enfim, da ordem constitucional.
Realmente, a verdadeira advocacia não se acovarda, ao contrário, ela é insurgente.
Insurgente assim como foi Esperança Garcia. Mulher negra, escravizada, mãe, e representação física de ousadia e revolução, como apenas aquelas que se rebelaram contra os caçadores de escravos na África, contra os comerciantes de escravos no Atlântico, contra os donos da Casa Grande no Brasil, foram.
A docilidade e submissão de pessoas negras escravizadas por brancos é um mito que resiste apenas em livros de história comprometidos em manter a também falsa percepção de um Brasil cordial e onde se celebra a democracia racial.
Africanas e africanos, submetidos ao horror da escravização, atiravam-se de navios negreiros ao mar, preferindo a morte à dominação. Fizeram longas greves de fome, atacaram as tripulações. Em solo brasileiro, aquilombaram-se, impelidos a criar estratégias coletivas de sobrevivência. Nesse local de opressão, de estar forçadamente postos "à margem", em situação de absoluta escassez de direitos básico e fundamentais, formaram-se também condições de resistência.
É "às margens", na perspectiva das periferias e, a partir delas, que as insurgências têm nascedouro. Grada Kilomba, escritora e artista interdisciplinar portuguesa, afirma que, segundo a teórica feminista bell hooks, "estar na margem é ser parte do todo, mas fora do corpo principal" e complementa ensinando que a margem não deve ser vista apenas como um espaço periférico, um espaço de perda e privação, mas sim como um local de resistência e possibilidade.
Na marca da ruptura e da escassez a identidade negra, que foi forçada a se submeter a margens sociais, criou suas contranarrativas.
Assim o fez Esperança Garcia. E quando denunciou os maus tratos, por si e por outros sofridos, de forma lógica e organizada, em uma espécie de pedido formal à autoridade da época, Esperança não apenas demonstrou a coragem e ousadia que é a marca de mulheres negras. Deixou explícito ainda, sua inteligência política, pois se reconheceu representante e atuou como membro de sua comunidade, pleiteando aquilo que lhe era de direito segundo o ordenamento jurídico vigente.
POLÍTICA É UM SUBSTANTIVO FEMININO
Onde quer que a opressão se manifeste neste país, pessoas negras são vítimas em potencial.
Às mulheres negras, não sendo nem brancas nem homens, resta ocupar a pior posição dentro da supremacia de raça e gênero, a ausência dupla: a antítese tanto da branquitude, quanto da masculinidade.
E não se trata de um estado de vulnerabilidade natural. É uma realidade ativamente construída pelas instituições e pela sociedade. Parafraseando Joice Berth, escritora negra, arquiteta e pesquisadora na área de Direito à Cidade, se o homem negro é a lata de lixo da sociedade nós, mulheres negras, somos o esgoto, porque além de negras somos mulheres, somos pobres e quando velhas, somos o nada do nada.
Em 2020, logo antes do estouro da pandemia do COVID-19, eu estive na III Conferência Nacional da Mulher Advogada em Fortaleza/CE.
Durante o evento notei que havia um grupo de Advogadas negras que se movimentavam entre os painéis, sempre juntas, justamente para chamar a atenção para a presença delas naquele espaço. Usando seus corpos negros femininos como corpos políticos, suas presenças como lição pedagógica.
No final da Conferência, essas Advogadas lançaram a Carta das Juristas Negras, o início de um movimento que culminou com a implementação das cotas raciais nas eleições da OAB. Na leitura da carta uma das colegas, Dra. Marcelise Azevedo, fez uma analogia brilhante sobre o tão discutido teto de vidro que impede as mulheres de ascenderem em suas carreiras.
O teto de vidro é uma metáfora para representar as barreiras invisíveis que alguns grupos socialmente minoritários, como mulheres por exemplo, encontram para crescer em estruturas organizacionais, ou seja, uma segregação vertical.
Segundo Marcelise, as mulheres negras lidam com uma realidade ainda mais gravosa em sociedade, pois nós temos não apenas um teto de vidro que nos impedem de ascender a posições profissionais, mas sim uma porta de vidro, que sequer nos permite adentrar em determinados espaços de poder e tomada de decisão. Como é o ambiente político por exemplo.
Os direitos políticos, que são também direitos fundamentais, vêm sendo, historicamente negados às mulheres, mas, especialmente às mulheres negras. Porque a violência política atinge em cheio o gênero feminino, porém, tem mais força ainda sobre as que vivenciam atravessamentos de raça. Vivemos à margem por sermos negras. E, se nortistas, vivemos mais à margem ainda, por sermos amazônidas. Ainda assim, são as mulheres negras que lideram os processos de transformação social. Por isso que tentam com tanto afinco nos parar, pelo esforço contínuo em negar o acesso de pessoas negras a locais que nos permitirão impactar favoravelmente a vida de outras pessoas negras. A mensagem é bastante evidente: há limites para a nossa ascensão social.
Somos a síntese indissociável da opressão de gênero e raça. Sueli Carneiro nos ensina que existe uma "asfixia social" que estrangula mulheres negras no país: o sexismo e o racismo. Porém com racismo e sexismo, não pode haver democracia. Queremos inclusão, permanência e ascensão a esses locais de liderança em igualdade de oportunidade para todas nós, como as demais pessoas têm. Não existe igualdade de gênero sem a participação da mulher negra. Não existe futuro para nenhuma mulher, se o presente ignorar mulheres negras.
Precisamos urgentemente mudar a fotografia do poder nos parlamentos, no judiciário e nas instituições. Usar nosso corpo na ocupação dos espaços é uma estratégia importante para mulheres afrodiaspóricas saírem da visão colonizadora e escravagista a nós imposta.
Hoje, a tentativa de ocupação e representatividade de mulheres negras na política tem sido barrada pela violência política de gênero, que é ação, conduta ou omissão visando impedir, dificultar ou restringir os direitos políticos das mulheres - cis ou trans - em virtude de seu gênero.
São atos que tentam excluir a mulher do espaço político, dificultar o exercício de suas funções através de agressões de natureza física, moral, psicológica, econômica, simbólica ou sexual. A situação é ainda mais aguda quando envolve a mulher negra.
Recentemente duas parlamentares negras do Pará, a Deputada Estadual Lívia Duarte e a Vereadora Bia Caminha, sofreram ameaças de morte com evidente motivação, além do gênero, ainda de cunho racial já que em ambos os casos, trechos das ameaças citavam Marielle Franco, vereadora carioca negra assassinada em 2018, que assim como as paraenses, se destacava pela luta antirracista dentro do ambiente político.
Esse tipo de violência contra mulheres sempre existiu, e é histórica. A violência política contra a mulher porém, apenas passou a ser tipificada como crime em agosto de 2021, quando foi sancionada a Lei 14.192. Desde então, somente o Ministério Público Federal (MPF) contabilizou, até novembro de 2022, 112 procedimentos relacionados ao tema. Espera-se que criminalizar a violência política de gênero, sirva para mudar o cenário e inicie um momento de transição de uma cultura de normalização para uma cultura tolerância zero a tais atitudes.
ADVOCACIA É PROFISSÃO DE ESPERANÇA
Quando escuto as falas da advocacia feminina, sobre o quanto a advocacia é machista, o quanto a advocacia feminina é subrepresentada dentro dos espaços políticos de poder e de tomada de decisão, fico pensativa a respeito de como essa pauta é obviamente real e importante, mas, também fico pensando como isso se enquadra na vivência da Advogada negra. Porque antes de tudo a batalha da mulher negra é pela sobrevivência, então é obvio que o racismo vai impactar na nossa atuação profissional, principalmente em uma profissão como a advocacia que, além de possuir uma tradição fortemente machista e elitista, é predominantemente branca.
Estive como a primeira Advogada negra eleita Conselheira Federal da OAB pelo Estado do Pará. Fruto da representatividade e atuação pela classe, mas também, como consequência das políticas afirmativas de gênero e raça implantadas na OAB e, principalmente, como um chamado da mudança que há muito já devia ter acontecido dentro da instituição. E, em pouco mais de um ano estando como Conselheira Federal, algumas colegas Conselheiras veteranas vieram me contar, que talvez tenha sido a primeira vez que elas viram uma Advogada de turbante naquele Conselho.
Por isso, ressalto que não me agrada ser a primeira, embora saiba que toda partida inicia de um ponto, esse título não me contempla. Prefiro ser ponte, construída sólida o suficiente para não ser derrubada e que, possa ser atravessada por outras como eu, Advogadas negras, mulheres sem sobrenome na advocacia, Advogadas com foco na resistência e legado do nosso povo.
O atravessamento racial dentro da representação da classe não pode ser tratado de forma pura e meramente burocrática, com simples preenchimento de formulários. Promover a real democracia participativa e representativa dentro da OAB e transformar o espaço jurídico em um espaço mais democrático e plural é, acima de tudo, justiça social e cumprimento de nosso postulado estatutário de indispensabilidade de todos os operadores do direito na administração da justiça.
Ter Esperança Garcia, uma mulher negra escravizada, reconhecida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, como a primeira Advogada do Brasil é absolutamente empolgante e significativo para toda a advocacia negra, especialmente a feminina. Não somente por nos remeter à equidade racial e a igualdade de oportunidades dignas mas, principalmente por confirmar que instituições têm compromissos com valores maiores: combater a discriminação estrutural e institucional.
Porém não é tudo. A Advocacia Negra urge por avanços e reconhecimentos, especialmente quando se trata da juventude e da advocacia feminina.
A Comissão Nacional de Promoção da Igualdade avançou em importantes temas e ações afirmativas para a advocacia negra e seguiremos construindo a concretização da efetiva e ampla participação de nossas irmãs e irmãos de cor no Sistema OAB, contando com o apoio de toda a advocacia, sabedora que é, do compromisso feito, do juramento solene de defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social... todos eles compromissos que não podem se associar a discriminação de raça e gênero.
Celebrar a memória de Esperança é acreditar no futuro.
Suena Mourão é mulher negra, mãe do Moreno e do Caleb, advogada, especialista em Direito Administrativo, especializanda em Direito Antidiscriminatório, diretora da ABMCJ/PARÁ, chefe do Jurídico do CAU/PARÁ, Conselheira Federal eleita pelo Pará - 22/25 e presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do Conselho Federal da OAB - 23/25
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