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Análise

Revisão contratual pelo aumento extraordinário no preço de insumos

Por Brahim Bitar, sócio do Fonseca Brasil Advogados

24 de May de 2022 17h14

EMENTA: DIREITO CONTRATUAL. AUMENTO EXTRAORDINÁRIO DO PREÇO DE INSUMOS. REVISÃO CONTRATUAL. POSSIBILIDADE. CONTRATOS PRIVADOS E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS. DISTINÇÕES. VETORES OU PARÂMETROS NORMATIVOS. TEORIA DA IMPREVISÃO. CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR (CC, ART. 393). ONEROSIDADE EXCESSIVA (CC, ART. 478 E SS.). REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO (LEI No 8.666/93, ART. 65, INCISO II, ALÍNEA "D"; LEI No 12.462/11, ART. 9o, § 4o, INCISO I; LEI No 13.303/16, ART. 81, INCISO VI). CUIDADOS E RISCOS.

1.Introdução. No Direito Contratual, a superveniência de circunstâncias imprevisíveis, que alterem o quadro de expectativas, direitos e obrigações emanadas de uma dada relação jurídica, não é assunto novo e, quando ocorrida, sua resolução é tarefa das mais desafiadoras.

2. E um dos fatores que frequentemente conduzem a esse cenário é o aumento extraordinário do preço de insumos, o que pode compreender desde energia elétrica, madeira e recursos minerais, até peças industrializadas ou tecnologia sofisticada. Tudo depende da cadeia produtiva do produto ou serviço que figurou como objeto do contrato.

3. E as dificuldades com que as partes e seus conselheiros têm de lidar para superar essa crise contratual vão muito além da mera intepretação das Cláusulas do próprio contrato. Aliás, a prática jurídica mostra que a solução reclama o consenso das partes - na autocomposição - ou o convencimento do julgador - na heterocomposição - a respeito de pontos que estão, precisamente, fora do contrato.

4. Este ensaio se dedica exatamente ao tema da revisão contratual decorrente do aumento extraordinário do preço de insumos, com o propósito de lançar luzes e contribuir para uma melhor prática comercial-jurídica diante desse evento.

5. Premissas Teóricas. Antes de mais nada, é preciso recordar alguns parâmetros normativos decorrentes do próprio vínculo obrigacional que constitui o contexto em que o fato imprevisível se apresenta.

6. Numa aproximação geral, contratos podem ser definidos como manifestações de vontade coordenadas, que têm por escopo criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações. E, como ensina Jorge Cesa Ferreira da Silva1, "obrigação não é simplesmente dever de alguém frente a outro, mas, muito mais do que isso, é relação, e relação pautada por critérios de cooperação". Por isso, "[a] obrigação abrange, pois, deveres de prestação e de conduta - os chamados deveres laterais - e interesses do credor e do devedor".

7. Nada obstante a importância desse vínculo obrigacional-cooperativo em todo tipo de contrato, é sobretudo em contratos sinalagmáticos, em que as obrigações das partes são estabelecidas a partir de uma relação de causalidade/correspondência; e em contratos de trato sucessivo, em que a sua execução é continuada e se protrai no tempo; que o equilíbrio contratual desponta como vetor que deve pautar as obrigações das partes.

8. Assim, diante de situações concretas que causem o desequilíbrio do contrato em uma medida relevante, isto é, quando a novidade fática - como o aumento imprevisível do preço de insumos - frustra a matriz de riscos do Contrato e coloca uma das partes em posição de excessiva desvantagem; a obrigação se torna inexigível e a força obrigatória (pacta sunt servanda) do contrato deve ceder espaço para a sua adequação proporcional, em ordem a prevenir a mora ou o inadimplemento absoluto, e preservar o negócio jurídico.

9. E esse redimensionamento do conteúdo obrigacional do contrato pode variar desde a revisão das obrigações ou condições da avença, quando a prestação ainda for realizável e satisfizer o interesse útil do credor; até a liberação ou extinção da obrigação, na hipótese de as novas circunstâncias implicarem esforços extraordinários e injustificáveis ao devedor ou tornarem a prestação inviável ao credor. A revisão do negócio, contudo, tem precedência frente à extinção, de modo que deve ser prestigiada na maior medida possível.

10. Contratos Privados. No âmbito de contratos entre particulares, regidos pelas normas do Direito Privado, o Código Civil é o principal vetor normativo para viabilizar o reequilíbrio do contrato. Os principais instrumentos são (i) o caso fortuito ou força maior, previsto no art. 3932, que libera o devedor das consequências do inadimplemento, se por elas não tiver se responsabilizado (matriz de risco); e (ii)a onerosidade excessiva, prevista nos arts. 478 a 480 do CC3, instituto que reconhece que os negócios jurídicos estão vinculados ao contexto fático existente ao tempo em que foram celebrados, e que institucionaliza a teoria da imprevisão. Assim, sobrevindo evento imprevisível - ou previsível, mas cujas consequências eram incalculáveis -, que modifique de maneira relevante a forma ou o custo para o cumprimento de uma prestação, é de rigor a revisão do negócio, a fim de adaptá-lo ao contexto fático existente por ocasião de sua execução (cláusula rebus sic stantibus).

11. A finalidade da adaptação é respeitar o programa contratual e os proveitos que por meio dele as partes razoavelmente almejavam alcançar, em conformidade com a racionalidade econômica que animava ambas as partes - credor e devedor - ao tempo da celebração do contrato4.

12. Contratos Públicos. Já no âmbito de contratos administrativos com a Administração Pública, regidos por normas de Direito Público e Privado, o principal vetor normativo para a modificação do conteúdo obrigacional do contrato é a Lei no 8.666/93, cujo art. 65, inciso II, alínea "d"5, prevê a possibilidade de alteração do contrato administrativo, inclusive na própria via administrativa (por acordo entre as partes), para viabilizar a recomposição do seu equilíbrio econômico-financeiro.

13. A possibilidade de revisão das condições do Contrato, outrossim, encontra assento também na legislação especial, tal como no art. 9o, § 4o, inciso I, da Lei no 12.462/116, que regula o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC; e no art. 81, inciso VI, da Lei no 13.303/167, que disciplina o Estatuto Jurídico das Estatais.

14. No particular de contratos administrativos do setor de infraestrutura, a questão do reequilíbrio econômico-financeiro foi enfrentada de maneira ampla pelos Acórdãos 1604/2015 (Plenário) e 12460/2016 (Segunda Câmara) do Tribunal de Contas da União - TCU, cujos apontamentos servem de relevantes parâmetros para a avaliação do (des)cabimento da revisão contratual fundada no aumento do custo de insumos.

15. Conclusão. Enfim, a hipótese de aumento extraordinário do preço de insumos que integram a cadeia de produção, sobretudo em um cenário de pandemia, que impõe uma série de arranjos econômicos e políticos que agem como fator de estímulo ou desestímulo para a produção ou fornecimento de determinados insumos - com a consequente variação drástica do seu preço no mercado -; configura, em tese, causa apta a viabilizar a necessidade de recomposição do equilíbrio econômico- financeiro de contratos, privados ou públicos.

16. Cuidados. Para tanto, é essencial (i) o exame minucioso das características e condições de cada caso concreto, a fim de dimensionar os reais e atuais impactos dos aumentos do preço dos insumos sobre o cumprimento da prestação devida e sobre a remuneração correspondente; (ii) a adequada gestão das provas ou evidências disponíveis acerca da variação drástica e extraordinária do preço dos insumos, inclusive com o uso de elementos estatísticos e de análise inteligente dos dados (legal business intelligence); e (iii) a manutenção de diálogo qualificado com a parte adversa (particular ou Administração Pública), preservando a boa-fé também na situação excepcional.

17. Por fim, já durante as tratativas negociais para a possível revisão do contrato, cumpre às partes interessadas e ao gestor do contrato desde logo avaliar, com seriedade e cautela, os custos e riscos inerentes a eventual disputa sobre o tema, para que esses fatores orientem a tomada de decisão.

18. Não é demais lembrar que, como a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato é um dever que decorre do próprio vínculo obrigacional-cooperativo - ou dos deveres laterais - aditivos aos contratos firmados, exceto nos seguintes casos: I - para recomposição do equilíbrio econômico- financeiro decorrente de caso fortuito ou força maior; emanado do Contrato (respeitada a matriz de risco assumida); a adequação do pacto às novas circunstâncias é medida que, se não for ajustada por mútuo consentimento, será imposta por órgão dotado de poder jurisdicional - juiz ou árbitro.

19. Assim, uma vez firmada a avença e sobrevindo um repentino aumento dos preços de insumos que exorbite a álea ordinária do contrato, a sua revisão é providência que deve ser buscada por ambas as partes, como forma de preservar o negócio e evitar litígios que, no final do dia, importarão apenas no retardamento da execução do Contrato e na oneração dos custos (inclusive decorrentes do litígio) a serem suportados pela parte.

20. Em todo caso, a avaliação de todas as variantes e riscos não é tarefa simples e deve ser confiada a conselheiros experientes, que estejam dispostos a dialogar não apenas com a parte adversa, mas, antes, com os diversos departamentos (compras, financeiro, jurídico etc.) envolvidos com o Contrato. Gerir bem as informações disponíveis constitui a chave para uma melhor persuasão nas negociações e, ao fim e ao cabo, para o sucesso da pretensão de adaptação contratual.

Brahim Bitar

Julho-2021

NOTAS:

1 Inadimplemento das Obrigações. Vol. 7. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 31.

2 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

3 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

4 Sobre a necessidade de consideração da racionalidade econômica para a adequada interpretação e aplicação dos contratos comerciais, cf., por todos, FORGIONI, Paula. Contratos Empresariais: Teoria Geral e Aplicação. 4a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

5 Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (...) II - por acordo das partes: (...) d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.

6 Art. 9o Nas licitações de obras e serviços de engenharia, no âmbito do RDC, poderá ser utilizada a contratação integrada, desde que técnica e economicamente justificada e cujo objeto envolva, pelo menos, uma das seguintes condições: (...). § 4o Nas hipóteses em que for adotada a contratação integrada, é vedada a celebração de termos

7 Art. 81. Os contratos celebrados nos regimes previstos nos incisos I a V do art. 43 contarão com cláusula que estabeleça a possibilidade de alteração, por acordo entre as partes, nos seguintes casos: (...); VI - para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.