PROJETO DAS 10 MEDIDAS DE COMBATE À CORRUPÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO | Análise
Análise

PROJETO DAS 10 MEDIDAS DE COMBATE À CORRUPÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Por Ricardo Pieri Nunes

23 de May de 2022 13h47

PROJETO DAS 10 MEDIDAS DE COMBATE À CORRUPÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

 PROPOSTA DE VALIDAÇÃO DE PROVAS ILÍCITAS

 (Artigo 16 do Projeto de Lei número 4.850/2016, da Câmara dos Deputados) 

1. Com indesejável frequência, o ser humano tenta atribuir a responsabilidade por seus erros a fatores externos, que pretensamente não lhe dizem respeito, sobretudo quando o equívoco ganha publicidade, evidenciando aspectos não virtuosos do seu autor, a exemplo da propensão ao abuso, a debilidade técnica ou a negligência profissional. 

2. Não é com facilidade que o ser humano admite francamente vícios desta natureza. Costuma aflorar, em situações com este perfil, o pensamento de que o problema não está em si mesmo, mas em algo alheio, injusto, que merece ser modificado. 

3. A inusitada e quase inacreditável proposta de validação de nulidades veiculada no projeto das 10 medidas de combate à corrupção não poderia ilustrar melhor esta realidade. 2 

4. Pois dela se extrai uma inescondível nota de inconformismo com o resultado de determinados julgamentos pelos tribunais brasileiros, que geraram a anulação de processos criminais, em decorrência de irregularidades cometidas pelo próprio Ministério Público, fruto de atos diretamente realizados por seus membros, de omissões no controle externo da atividade policial ou da aceitação de decisões judiciais ilegais, contra as quais optou por não se insurgir oportunamente. 

5. Neste contexto, através de uma descomunal e bem pensada campanha de marketing, o Ministério Púbico empreende esforços de comunicação para se distanciar do problema e responsabilizar o sistema, que pretende ver reformado, para transformar afrontas ao devido processo legal em filigranas sem maior importância, passíveis de irrestrita anistia, em uma espécie de prenuncio de que os abusos continuarão a ser perpetrados, mas agora sob o cômodo conforto de um salvo conduto prévio. 

6. Nunca é demais lembrar que o surgimento do devido processo legal, como conquista do mundo civilizado, não se deu porque os detentores do poder antes o exerciam com sabedoria e equidade, distribuindo a cada um o que é seu, de modo a proporcionar justiça e bem-estar para todos. Bem ao contrário, a idealização de um modelo de regras para a busca da verdade no campo processual penal, que hoje conta com uma bilionária estrutura encarregada da sua implementação, resulta precisamente dos sistemáticos abusos que o estado sempre cometeu contra o indivíduo, e ainda continua a perpetrar em larga escala. 3 

7. Daí a necessidade de um regime de nulidades sólido no ordenamento jurídico, para reprimir os desvios que os detentores de parcela da soberania estatal historicamente tendem a cometer no desempenho da atividade de persecução criminal, quando se deparam com a possibilidade de privar o homem daquilo que lhe é mais caro: a liberdade. 

8. Não é verdadeira, em absoluto, a afirmação dos autores do projeto de que o sistema atual é "disfuncional, possui caráter extremamente subjetivo, que traduz em insegurança jurídica, conduz a decisões seletivas, transforma o processo em uma autêntica loteria e resulta em impunidade". 

9. Ora, o que há de subjetivo e disfuncional na previsão do artigo 157 do Código de Processo Penal (CPP) de que "são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais"? A regra é clara e objetiva como a luz solar: se a produção da prova contrariar a Lei ou a Constituição, será tida como ilícita. 

10. O Ministério Público, porém, entende que, a depender do tipo de afronta à Lei ou à Constituição Federal, a prova deve ser aceita, propondo que a sua anulação só ocorra quando for obtida em descompasso com "direitos e garantias constitucionais ou legais", e admitida quando houver violação a "normas constitucionais ou legais", ao argumento de que o conceito atualmente em vigente no CPP "é por demais amplo e permite a anulação de 4 provas (o sepultamento de grandes operações policiais de combate ao crime ou de complexas ações penais em fases avançadas ou até mesmo já julgadas) por inobservância de uma simples formalidade, por menor importância que tenha, mesmo que isso não implique violação de direito ou garantia do investigado." 

11. Sem maiores constrangimentos, portanto, reafirma o Ministério Público o seu intento de continuar a produzir provas que levarão ao encarceramento de pessoas sem respeitar as normas constitucionais e legais que disciplinam a matéria, especialmente em "grandes operações policiais", desejando apenas não mais arcar com as consequências das suas ações, como se isto fosse algo positivo para o mundo civilizado. 

12. Evidentemente, não existe simples formalidade sem importância quando se trata da produção de provas que podem levar pessoas ao cárcere. A própria afirmação nestes termos do Ministério Público é o quanto basta para confirmar o próprio sentido da norma, que aí está, tal como posta hoje, precisamente para servir de freio ao ímpeto, recorrente entre os detentores do poder, de atentar contra a liberdade do indivíduo antes da confirmação da sua culpa no processo penal. Não há como se exigir o cumprimento da lei descumprindo-a, a partir da opinião pessoal de um ou outro membro Ministério Público - e são milhares - de que está diante de uma simples formalidade sem importância, que pode ser ignorada de acordo com o seu critério ou humor. 5 

13. É preciso ler e reler mais de uma vez os dez incisos do parágrafo segundo que o projeto de lei pretende acrescentar ao artigo 157 do CPP, para acreditar que tais propostas legislativas foram realmente formuladas e, o que é pior, levadas ao Congresso Nacional. 

14. As duas primeiras hipóteses de validação de provas ilícitas, descritas nos incisos I e II, revelam-se absolutamente redundantes e desnecessárias, porquanto já previstas no artigo 157 do CPP em sua atual feição. O ordenamento em vigor já autoriza a aceitação da prova cuja produção não guarda nexo de causalidade com aquela eivada de ilicitude, ou que foi obtida de fonte independente da origem espúria. A ideia de acrescentar na Lei algo nela já previsto, naturalmente, não faz qualquer sentido. 

15. Os aspectos realmente chocantes da proposta do Ministério Público começam no inciso III, com vista à validação de provas ilícitas quando "o agente público houver obtido a prova de boa-fé ou por erro escusável, assim entendida a existência ou inexistência de circunstância ou fato que o levou a crer que a diligência estava legalmente amparada". 

16. Ora, Delegados de Polícia, Promotores de Justiça, Procuradores da República e Juízes sempre sabem exatamente o que estão fazendo no desempenho das suas funções. São profissionais altamente qualificados, preparados do ponto de vista intelectual, submetidos ao duro crivo de um concurso público dificílimo, e não crianças inocentes de tenra idade que 6 ingenuamente podem ser levadas a crer que o lícito, na realidade, é espúrio. Todos têm plena consciência dos seus atos e deveres, além de conhecerem profundamente o Direito Penal e Processual Penal. 

17. No ponto, impressiona o timbre de condescendência que caracteriza o exemplo dado pelo Ministério Público na justificativa do projeto de lei, importado do sistema norte-americano, consistente no seguinte precedente judicial: "A exceção de boa-fé (good faith exception): em Arizona vs. Evans, 514 U.S.1 (1995), Davis vs. U.S. 131 S.Ct. 2419 (2011) e Herring vs. U.S., 555 U.S. 135 (2009), a SCOTUS decidiu que não se deve excluir a prova quando o policial a tiver obtido de boa-fé ou por erro escusável, assim entendida a existência ou inexistência de circunstância ou fato que o levou a crer que a diligência estava legalmente amparada, como, por exemplo, quando o mandado contiver dados incorretos ou vier a ser posteriormente anulado. Entendeu-se que, nessas circunstâncias, a exclusão da prova não produziria o efeito dissuasório desejado, de evitar que os policiais, no futuro, voltassem a violar direitos constitucionais dos investigados." 

18. Diferentemente do que pensa o Ministério Público, a única maneira de dissuadir o servidor público da eventual tentação de não cumprir o seu mister com zelo e respeito à Lei - para que confeccione corretamente um mandado que permitirá a invasão de um domicílio, por exemplo -, é prever que os seus equívocos, abusos ou lapsos resultem em consequências sérias e efetivas. Apenas fazer vista grossa, anistiando a irregularidade, como pretende o Ministério Público, despontaria como verdadeiro incentivo ao 7 abuso, à negligência e à ineficiência, contrariando princípios elementares que regem a Administração Pública. 

19. O que ora se afirma ganha especial relevo em um país como o Brasil, marcado por uma rotina perene de desrespeito aos mais elementares direitos fundamentais, que como regra atinge investigados e réus menos favorecidos, expostos diariamente ao mau uso do arbítrio sem qualquer tipo de assistência jurídica efetiva. Confissões obtidas sem a prévia advertência do direito ao silêncio, invasões de domicílio à falta de ordem judicial e o acesso a dados sigilosos de forma clandestina, infelizmente, ainda fazem parte do cotidiano do sistema de persecução criminal. 

20. Por óbvio, tais problemas não serão eliminados ou ao menos atenuados com a criação de brechas na lei para anistia-los, mas sim com o reforço da legislação com o objetivo de contê-los. 

21. Não podemos perder de vista que o processo penal não é regido pelas boas intenções dos que nele atuam, mas sim por regras objetivas. O que realmente importa, nesta seara, é a estrita observância das balizas impostas pelo legislador às investidas do Estado contra do indivíduo. As nuances psíquicas dos operadores do Direito Penal, suas boas ou más intenções, até mesmo por não serem passíveis de conferência, não tem qualquer 8 relevância para fins de avaliação da legalidade dos atos praticados no curso da persecução criminal. 

22. Aliás, existe um dito popular conhecido a respeito de um local bastante desagradável que se encontra repleto de boas intenções... 

23. O projeto de lei pretende também anistiar a ilicitude da prova quando "a relação de causalidade entre a ilicitude e a prova dela derivada for remota ou tiver sido atenuada ou purgada por ato posterior à violação" (inciso IV). De acordo com o Ministério Público, "quando houver decorrido muito tempo entre a violação da garantia e a obtenção da prova, tornando remota a relação de dependência ou consequência, ou quando fato posterior a houver descontaminado ou atenuado essa relação, como, por exemplo, quando o investigado resolver se tornar colaborador". 

24. Em outras palavras, se já passou "muito tempo", o ato ilegal deveria ser perdoado. Na visão do Ministério Público, o decurso do tempo, sequer determinado no projeto de lei - 1 mês, 1 ano, 5 anos? -, teria o condão de "descontaminar" a ferida no ordenamento jurídico, especialmente "quando o investigado resolver se tornar colaborador". 

25. O que se quer, portanto, é esquentar a prova ilícita. 9 

26. O primeiro obstáculo à proposta consiste no caráter extremamente impreciso dos critérios que permitiriam a sugerida descontaminação. Em que consistiria, afinal, a atenuação ou a purgação da ilicitude da prova, ventiladas na proposta ministerial? Seria conveniente deixar ao arbítrio de milhares de Delegados de Polícia, membros do Ministério Público e Juízes dos quatro cantos do Brasil a livre definição do que seria atenuação ou purgação da ilicitude da prova? 

27. Se uma prova é obtida mediante tortura, através de monitoramento telefônico clandestino ou por meio da violação de sigilo bancário sem autorização judicial prévia, a passagem do tempo jamais terá o condão de branqueá-la. Em qualquer Estado que pretenda se credenciar como Democrático e de Direito, a produção da prova em tais condições, ao arrepio das regras do jogo, gera nulidade absoluta, passível de cognição a qualquer tempo, inclusive após o trânsito em julgado da condenação. 

28. De toda sorte, não deixa de ser sugestiva a proposta de validação de provas ilícitas "quando o investigado resolver se tornar colaborador". É notório que os acordos de delação premiada recentemente articulados pelo Ministério Público Federal invariavelmente contém cláusula estabelecendo que "a defesa desistirá de todos os Habeas Corpus impetrados no prazo de 48 horas, desistindo também do exercício de defesas processuais, inclusive de discussões sobre competência e nulidades". Por que o delator tem de se calar com tamanha pressa em relação a possíveis nulidades ocorridas no curso da investigação? Dentre as provas 10 levadas ao seu conhecimento, e que serviram de base para a tomada da sua decisão de delatar, haveria algo a ser escondido, que deva permanecer por todo o sempre à margem do controle do contraditório? 

29. É difícil não ter a impressão de que o Ministério Público está advogando em causa própria ao propor a legalização de provas ilícitas "quando o investigado resolver se tornar colaborador", a fim de sepultar em definitivo irregularidades ocorridas previamente à delação. Mas o que importa, seja este ou não o caso, é que a confissão forçada, induzida ou sugerida após a obtenção de uma prova ilícita sempre conduzirá ao reconhecimento de nulidade absoluta no processo penal, não podendo ser atenuada ou purgada em hipótese alguma. 

30. O Ministério Público deseja ainda incorporar ao ordenamento jurídico a possibilidade de validar a prova ilícita "derivada de decisão judicial posteriormente anulada, salvo se a nulidade decorrer de evidente abuso de poder, flagrante ilegalidade ou má-fé" (inciso V). Não bastasse a marcante subjetividade destes critérios, o que por si só já justifica o descarte da proposta, devemos lembrar que o Ministério Público atua no processo penal também como fiscal da lei (custos legis), cabendo-lhe zelar pela legalidade das decisões judiciais proferidas no curso da persecução penal. 11 

31. O problema é que, na prática, se a sua conveniência de momento é atendida pelo julgador, o Ministério Público costuma se dar por satisfeito e deixa de questionar a decisão proferida, mesmo que não preencha os parâmetros de legalidade sabidamente exigidos para a situação. Isto só ocorre a partir do momento em que o caso é submetido ao crivo das instâncias de controle do Poder Judiciário por provocação da Defesa, rendendo ensejo à anulação da prova. 

32. Uma simples consulta ao sítio de internet dos Tribunais Superiores revela sem maiores dificuldades a existência de um conjunto de casos - pouco representativo, diga-se de passagem - em que provas foram anuladas por conta da insistência do Ministério Público em prosseguir ou não se insurgir, como lhe cabia, contra a condução da investigação criminal em contexto manifestamente contrário à Lei e à Constituição. 

33. São casos em que, verbi gratia, inquéritos foram anulados porque o Ministério Público deliberadamente optou por investigar autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função, mesmo não possuindo atribuição para tanto, ou tolerou que assim se procedesse. Ou então em que provas foram anuladas porque o Ministério Público decidiu apurar suposto crime contra a ordem tributária, mesmo sabendo que não havia lançamento definitivo de crédito fiscal, em descompassado com a Súmula Vinculante número 24 do STF, ou tolerou que assim se procedesse. Ou, ainda, em que o Ministério Público solicitou o deferimento de uma medida cautelar, a 12 exemplo da interceptação telefônica, como providência inaugural de investigação, baseada apenas em denúncia anônima, ou tolerou que assim se procedesse. 

34. Os exemplos de descumprimento intencional da Lei, ou em que foi nitidamente assumido o risco da posterior anulação do ato, são variados e guardam entre si uma característica comum: a recusa do Ministério Público em admitir a própria falha, substituída pela tentativa de transferir a responsabilidade pela nulidade a algum fator externo, estranho à sua atuação. 

35. Ao contrário do que quer fazer crer o Ministério Público, os casos em que processos criminais foram anulados em decorrência de vícios relacionados à produção da prova não possuem qualquer representatividade, que eventualmente pudesse legitimar a drástica mudança ora proposta, muito menos enquanto medida de pretenso combate à corrupção. Em sua exposição sobre o projeto de lei ora em análise na Câmara dos Deputados, no dia 12 de setembro de 2016, o Professor Pós Doutor Ricardo Jacobsen Gloeckner apresentou números contundentes sobre o assunto, fruto de estudo sobre o julgamento de casos com este perfil pelo Supremo Tribunal Federal nos anos de 2014 e 2015, alcançando a seguinte constatação: 13 - 349 casos de nulidades examinados; - 30 casos inaproveitáveis para a pesquisa, pois não houve julgamento de mérito; - Dos 319 remanescentes, o STF reconheceu nulidade em 29 casos (9,36%); - Destes 29 casos, 4 versavam sobre crimes contra a Administração Pública (1,29%). 1 

36. Dada a pífia representatividade dos casos de corrupção em que nulidades na produção da prova foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal, logo se percebe que a proposta do Ministério Público, na verdade, como dito linhas acima, não passa de reflexo do inconformismo com derrotas pontuais que seus membros sofreram nos tribunais brasileiros, em alguns poucos casos versando sobre uma ou outra operação policial promovida com estrépito midiático, o mesmo estrépito que, após a anulação da prova, expôs o abuso que a originou ao escrutínio da opinião pública, revelando facetas pouco virtuosas de seus autores. 

37. Outra hipótese de validação de nulidades sugerida pelo Ministério Público diz respeito à prova "obtida em legítima defesa própria ou de terceiros ou no estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência" (inciso VI).  1 A exposição do Professor Ricardo Jacobsen Gloeckner está disponível no sítio de internet da Câmara dos Deputados, no link: http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/webcamara/arquivos/videoArquivo?codSessao=57751#videoTitulo. Acesso no dia 26 de setembro de 2016. 14 Ocorre que a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal, como se sabe, consubstanciam causas de exclusão da ilicitude do crime, previstas no artigo 23 do Código Penal. São institutos de Direito Penal material, desprovidos do caráter instrumental inerente ao Direito Processual, a exemplo daqueles que disciplinam a produção da prova. 

38. Daí porque, do ponto de vista técnico, se afigura esdrúxula a cogitação de que causas de exclusão da ilicitude de delitos teriam aptidão para gerar efeitos sobre a produção da prova, dada a óbvia ausência de zonas de interseção jurídica entre tais institutos. 

39. Causa espécie, de qualquer forma, constatar que o Ministério Público deseja ver aplicadas causas de exclusão da ilicitude de crimes para validar provas ilícitas, já que isto permite entrever perigosa propensão à aceitação de abusos na persecução penal, a depender do fim a que se destinem. Obter a confissão do investigado mediante tortura para evitar a consumação de um delito, por exemplo, se encaixaria na definição de legítima defesa de terceiros com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime? Dar sequência ao projeto e torcer para que na prática isto não se concretize, na crença da boafé alheia, está longe de parecer a melhor alternativa. 15 

40. De acordo com o Ministério Público, a prova ilícita deve também ser aceita quando "usada pela acusação com o propósito exclusivo de refutar álibi, fazer contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa ou demonstrar a falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida, não podendo, contudo, servir para demonstrar culpa ou agravar a pena" (inciso VII). Destarte, caso não consiga fazer prevalecer a sua tese acusatória conforme as regras do jogo, rechaçando as alegações defensivas a partir do exercício regular das faculdades processuais de que dispõe, quer o Ministério Público a chance de obter contraprovas de qualquer forma, custe o que custar, vilipendiando a Lei e a Constituição se preciso for. 

41. Ao mesmo tempo assustadora e pueril, a proposta revela preocupante desprezo pela noção elementar de que a verdade só pode ser alcançada no processo penal à moldura dos tipos procedimentais de regência consagrados no ordenamento jurídico, e nunca à margem das suas balizas. Logo, caso o Ministério Público fracasse em demostrar segundo as regras do jogo que as alegações defensivas não correspondem à verdade, restar-lhe-á tão somente aceitar a absolvição do réu, com a serena consciência da legitimidade plena deste resultado, porquanto alcançado na forma da Lei da qual é fiscal e que jurou respeitar. 

42. No tocante à proposta de validação da prova ilícita sempre que "necessária para provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena" (inciso VIII), tratase de noção há muito conhecida e aceita pacificamente tanto pela doutrina 16 como pela jurisprudência, já incorporada em definitivo à tradição jurídica brasileira, o que torna despicienda, a nosso ver, a reforma pontual da legislação para positivá-la. 

43. A proposta do Ministério Público ainda contempla a possibilidade de o cidadão comum se engajar na produção de provas ilícitas, no afã de validá-las quando "obtidas no exercício regular de direito próprio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público" (inciso IX), ou quando "obtida de boa-fé por quem dê notícia-crime de fato que teve conhecimento no exercício de profissão, atividade, mandato, função, cargo ou emprego públicos ou privados" (inciso X). 

44. No mundo civilizado, porém, o Estado não deve propiciar condições para o surgimento de justiceiros, incentivando o cidadão comum a produzir provas ilícitas na apuração de crimes, como se isto refletisse o exercício regular de um direito, muito menos com o auxílio de agentes públicos, a quem incumbe agir em sentido diametralmente oposto, orientando e coibindo condutas atentatórias ao ordenamento jurídico no seio da sociedade. 

45. A partir do momento em que o Estado passa a permitir que o cidadão comum viole garantias constitucionais alheias para produzir provas, sempre que, a seu livre talante, julgue estar no exercício regular de um direito, podendo, inclusive, contar com o auxílio de agentes públicos para alcançar 17 tais desideratos, "melhor será abandonarmos o recinto e saímos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! " 2 

46. Não obstante, qualquer pessoa do povo, querendo, sempre poderá comunicar às autoridades o cometimento de práticas delituosas das quais tenha tomado conhecimento, na forma do artigo 5º, § 3º do CPP (delatio criminis), a fim de que as medidas de Direito pertinentes sejam levadas a efeito perante as instâncias formais de controle, pois somente assim o Poder Judiciário poderá oportunamente intervir face à eventual necessidade de supressão casuística de garantias constitucionais para instrumentalizar a apuração dos fatos. O controle judicial em situações com este perfil se dá ex ante, justamente para legitimar a produção da prova, e não após a consumação da afronta à norma da regência, a fim de lavar a irregularidade perpetrada. 

47. O mesmo raciocínio se aplica ao chamado whistleblower, ou seja, aquele que decide comunicar às autoridades irregularidades ocorridas em ambientes profissionais, das quais tenha tomado ciência. Ao invés de agir concentrando em si mesmo as funções de policial, promotor e juiz, violando a lei para produzir provas, o whistleblower deve lançar mão dos  2 Passagem célebre do inesquecível voto do Ministro Eros Grau no julgamento do HC número 84.078-7/MG, concluído em 5.2.2009, quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a execução da pena só pode ter início após o trânsito em julgado da decisão condenatória. 18 canais próprios disponibilizados nos ambientes corporativos para a comunicação de irregularidades, ou então informa-las diretamente às autoridades competentes para que tomem as medidas pertinentes. O Estado, insista-se, deve incentivar o cidadão comum a abandonar o seu porrete, e não a utiliza-lo com mais frequência, seguindo o seu próprio instinto de boa-fé. 

48. Após elencar estas inaceitáveis hipóteses de validação de provas ilícitas, o Ministério Público propõe o acréscimo de mais três parágrafos ao artigo 157 do CPP, todos manifestamente redundantes, impertinentes ou desnecessários. 

49. O texto do parágrafo terceiro da proposta guarda perfeita coincidência, ipsis literis, com o texto do mesmo parágrafo terceiro do artigo 157 hoje em vigor ("preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente"), daí resultando, de forma autoexplicativa, a desnecessidade do acréscimo pretendido. 

50. O parágrafo quarto da proposta, por sua vez, diz que "o juiz ou tribunal que declarar a ilicitude da prova indicará as que dela são derivadas, demonstrando expressa e individualizadamente a relação de dependência ou de consequência, e ordenará as providências necessárias para a sua retificação ou renovação, quando possível". A 19 proposição mostra-se impertinente, evidenciando até certa arrogância, por duas boas razões: a uma, por fixar o conteúdo pormenorizado de fundamentação de uma decisão judicial específica, como se o juiz não soubesse o que deve ser dito neste tipo de situação; a duas, porque quando a nulidade é reconhecida em instâncias superiores, pela via do Habeas Corpus, como costuma ocorrer, o tribunal muitas vezes não dispõe de condições para avaliar o alcance de contaminação da irregularidade constatada. A depender das circunstancias do caso concreto, pode ser prudente, e até mesmo recomendável, que se deixe ao magistrado e às partes em primeira instância a realização desta avaliação, de posse da íntegra dos autos da investigação ou do processo. 

51. Por fim, o Ministério Público propõe o acréscimo de um parágrafo quinto ao artigo 157 do CPP, preconizando que "o agente público que dolosamente obtiver ou produzir prova ilícita e utilizá-la de má-fé em investigação ou processo, fora das hipóteses legais, sujeita-se a responsabilidade administrativa disciplinar, sem prejuízo do que dispuser a lei penal". Trata-se de previsão meramente decorativa, à falta da fixação de nova e específica penalidade, além de redundante, considerando a obviedade da consequência de responsabilização do servidor público que cometeu o abuso. 

52. Em conclusão: aos inúmeros instrumentos invasivos e truculentos de que o Estado hoje dispõe para investir contra o indivíduo durante a persecução criminal, e não são poucos, a proposta de branqueamento de provas 20 definitivamente não deve ser incorporada ao ordenamento jurídico. Mormente porque tal proposta nenhum vínculo mantém com o escopo de combate à corrupção alardeado pelo Ministério Público em sua campanha de marketing, evidenciando, em boa verdade, tentativa camuflada de abolição do limitadíssimo sistema de nulidades vigente no processo penal brasileiro, que, em sua atual feição, já espelha fielmente o caráter hostil à Defesa inerente à sua notória fonte de inspiração: o Código Rocco da Itália de Mussolini. 

53. Por tais razões, opinamos pela integral rejeição da proposta de reforma do artigo 157 do CPP, constante do artigo 16 do Projeto de Lei número 4.850/2016, da Câmara dos Deputados. 

54. É o parecer. Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2016.