A presença digital está cada vez mais enraizada em nossas rotinas. Perfis em
redes sociais, arquivos em nuvem, contas de e-mail, canais no YouTube, programas
de milhagem, criptomoedas e até mesmo assinaturas em plataformas de streaming
fazem parte do patrimônio de muitas pessoas. Com isso, surge uma questão
inevitável: o que acontece com esses bens e direitos quando alguém falece? É nesse
cenário que se insere o conceito de herança digital.
A herança digital pode ser compreendida como o conjunto de bens, direitos e
obrigações de natureza digital deixados por uma pessoa após sua morte. Diferente
dos bens materiais, trata-se de elementos intangíveis, que muitas vezes possuem
tanto valor econômico quanto afetivo. Nessa categoria se enquadram, por exemplo,
as contas monetizadas em redes sociais, arquivos armazenados em plataformas
como Google Drive e iCloud, créditos em aplicativos de mobilidade ou alimentação,
moedas virtuais como bitcoins e NFTs, além de perfis pessoais que reúnem
lembranças e registros de toda uma vida.
Esse universo pode ser classificado em três grandes grupos. O primeiro é o
dos bens digitais de natureza patrimonial, que possuem valor econômico direto
e, portanto, podem ser inventariados e transmitidos aos herdeiros, como ocorre com
criptomoedas ou lojas virtuais. O segundo é o dos bens afetivos, que não têm valor
financeiro, mas carregam significativa importância emocional, a exemplo de fotos,
mensagens ou perfis em redes sociais que podem ser preservados, excluídos ou
transformados em memoriais. Já o terceiro grupo corresponde às contas de uso
contratual, ligadas a licenças ou assinaturas pessoais, como Netflix, Spotify e
softwares pagos, que, em regra, não são transferíveis e se encerram com o
falecimento do titular.
No Brasil, ainda não há uma legislação específica que regule de forma clara a
herança digital. O tema aparece de maneira indireta no Código Civil, ao tratar da
transmissão da herança em geral, e no Marco Civil da Internet, que protege os dados
pessoais, mas não estabelece normas sobre sucessão digital. Já houve tentativas de
regulamentação, como o Projeto de Lei 4.099/2012, posteriormente arquivado, e sua
reapresentação pelo Projeto de Lei 6.468/2019, que ainda tramita no Senado Federal.
Essa ausência normativa gera insegurança e abre espaço para interpretações
diversas por parte do Judiciário.
A jurisprudência, por sua vez, ainda se encontra em construção. Em alguns
casos, tribunais reconheceram que bens digitais com valor econômico, como canais
monetizados em redes sociais, devem integrar o inventário e ser partilhados entre
os herdeiros. Por outro lado, quando se trata de informações de caráter pessoal,
como mensagens privadas e e-mails, a posição majoritária tem sido a de resguardar
o direito à intimidade do falecido. Nesses casos, prevalece o entendimento de que os
herdeiros não podem ter acesso irrestrito aos dados, a menos que exista interesse
patrimonial relevante que justifique a medida.
Essa tensão entre o direito dos herdeiros e a preservação da privacidade do
falecido evidencia um dos grandes desafios do tema. Outro ponto sensível envolve o
direito de imagem e a memória digital: quem pode decidir se um perfil em rede
social será excluído ou transformado em um memorial? Na prática, a decisão
costuma caber aos familiares, salvo quando o titular em vida deixou instruções claras.
Em situações envolvendo criptomoedas, a problemática é ainda mais delicada, já
que, sem a chave privada ou a chamada "seed phrase", os herdeiros não conseguem
acessar os valores, que acabam se perdendo de forma definitiva.
O caso da cantora Marília Mendonça ilustra de forma prática a complexidade
da herança digital. Após sua morte em 2021, seus perfis nas redes sociais, direitos
autorais e canais de monetização continuaram gerando receitas milionárias. Como
não havia testamento, a sucessão seguiu a ordem prevista no Código Civil, tendo o
filho Léo como herdeiro, representado por seu pai até atingir a maioridade. A
administração do espólio ficou a cargo de sua mãe, nomeada inventariante no
processo. O episódio trouxe à tona não apenas o impacto econômico da herança
digital, mas também conflitos de interesses entre preservação da memória, gestão
patrimonial e disputas familiares.
Diante desse cenário, o planejamento sucessório mostra-se cada vez mais
necessário. A elaboração de um testamento que contemple os bens digitais, o uso de
plataformas de gerenciamento de senhas e a comunicação transparente entre os
familiares são medidas práticas que podem evitar disputas judiciais futuras. Além
disso, a regulamentação legislativa é urgente para trazer segurança jurídica a um
tema que afeta a todos.
A iminente reforma do Código Civil, atualmente em discussão no Congresso
Nacional, representa um marco importante no tratamento da herança digital. O
anteprojeto elaborado pela comissão de juristas incluiu, pela primeira vez, previsões
específicas sobre o patrimônio digital, reconhecendo expressamente que perfis em
redes sociais, ativos virtuais, programas de milhagem, criptomoedas e demais bens
intangíveis de natureza digital integram o rol de bens sucessíveis.
Essa inovação busca suprir a lacuna legislativa hoje existente, trazendo maior
segurança jurídica para os herdeiros e também limites claros quanto ao respeito à
privacidade do falecido. O texto propõe, por exemplo, que mensagens privadas, e
-mails e conteúdos de caráter estritamente pessoal somente poderão ser acessados
mediante autorização judicial, salvo disposição expressa do titular em vida. Assim,
busca-se equilibrar o direito à intimidade com o interesse patrimonial dos herdeiros.
Outro ponto relevante da proposta é a previsão de que os bens digitais com
valor econômico, como criptoativos, canais monetizados em redes sociais e lojas
virtuais, deverão ser inventariados e partilhados, em igualdade com os bens
materiais tradicionais. Já quanto aos bens de caráter meramente afetivo, como
fotografias, lembranças e perfis pessoais, a decisão sobre sua manutenção ou
exclusão caberá aos herdeiros, respeitando a vontade previamente manifestada pelo
titular.
A reforma, portanto, sinaliza uma atualização necessária do ordenamento
jurídico brasileiro, alinhando o Código Civil à realidade tecnológica contemporânea.
Ao reconhecer a herança digital de forma expressa, o legislador busca não apenas
pacificar divergências jurisprudenciais, mas também oferecer instrumentos concretos
para o planejamento sucessório em ambiente digital.
A herança digital é, portanto, uma realidade incontornável. Ela mistura
aspectos patrimoniais e afetivos, envolve questões de privacidade e imagem, e
desafia o Direito a equilibrar valores fundamentais em um contexto cada vez mais
tecnológico. Em um cenário de lacunas legislativas e decisões judiciais ainda pouco
uniformes, cabe aos cidadãos se anteciparem e planejarem, de modo a garantir que seu patrimônio, material ou digital, seja respeitado e transmitido da forma desejada.
Referências
CNN BRASIL. Novo Código Civil: projeto cria herança digital e muda direito de
cônjuges. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/novo
codigo-civil-projeto-cria-heranca-digital-e-muda-direito-de-conjuges/.
CONJUR. Modernidade e sucessão: herança digital. Consultor Jurídico, São Paulo, 18
mar. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-18/modernidade
e-sucessao-heranca-digital/.
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO PARANÁ. Herança digital: é possível herdar
redes sociais e o patrimônio virtual de uma pessoa? Defensoria Pública do Estado do
Paraná, Curitiba. https://www.defensoriapublica.pr.def.br/Noticia/Heranca-digital-e
possivel-herdar-redes-sociais-e-o-patrimonio-virtual-de-uma-pessoa.
GLOBO. Senha do perfil e acesso a mensagens privadas: texto sobre herança digital
no novo Código Civil divide juristas. O Globo, Rio de Janeiro, 18 maio 2025.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/05/18/senha-do-perfil
e-acesso-a-mensagens-privadas-texto-sobre-heranca-digital-no-novo-codigo-civil
divide-juristas.ghtml.
JUSBRASIL. A herança digital. JusBrasil. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-heranca-digital/2052636445.
JUSBRASIL. Herança digital no âmbito de criptoativos e NFTs. JusBrasil. Disponível
em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/heranca-digital-no-ambito-de
criptoativos-e-nfts/2128058399.
JUSBRASIL. Herança digital: o que é e como funciona. JusBrasil. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/heranca-digital-o-que-e-e-como
funciona/843331448.

