A responsabilidade civil do médico decorre da obrigação de reparar os danos causados ao paciente em razão de erros no exercício da atividade profissional. Tradicionalmente, fundamenta-se nos elementos clássicos da culpa geradora do erro, sendo esses a negligência, a imprudência ou imperícia, sendo necessária a comprovação de erro e de nexo causal entre a conduta médica e o dano sofrido pelo paciente.
Erros médicos podem ocorrer em diversas etapas da relação clínica, como no diagnóstico incorreto, na prescrição inadequada, durante procedimentos cirúrgicos ou no acompanhamento pós-operatório. Tais falhas, quando causam prejuízo ao paciente, ensejam a responsabilização civil, que, na maioria das vezes, possui natureza subjetiva, ou seja, depende da demonstração de conduta culposa.
A jurisprudência brasileira tem se consolidado no sentido de que a medicina, salvo nas especialidades em que há obrigação de resultado[1], como procedimentos estéticos e odontológicos eletivos, se baseia na obrigação de meio[2], ou seja, exigindo que o médico atue com diligência, prudência e técnica adequada, mas não garantindo cura. Contudo, quando há erro de procedimento cirúrgico, como lesões evitáveis, falhas técnicas, esquecimentos de objetos cirúrgicos no corpo do paciente ou condutas contrárias às boas práticas médicas, há caracterização de imperícia ou negligência, ensejando reparação civil.
No entanto, a responsabilização civil médica adquire contornos mais complexos quando, além do aspecto técnico, envolve a autonomia do paciente, especialmente quando este, por razões de crença religiosa ou religiões alternativas, recusa determinados tratamentos, como ocorre com as Testemunhas de Jeová em relação a transfusão de sangue.
Em tais situações, o médico se vê entre dois deveres: o de preservar a vida, um princípio fundamental que rege a medicina, e o de dever de respeitar a vontade do paciente, expressa com base na liberdade de crença e consciência.
Esse conflito foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário nº 1.212.272, Tema 1069, julgado em 25 de setembro de 2024, que fixou importantes parâmetros éticos e jurídicos sobre a matéria.
No caso concreto, uma paciente Testemunha de Jeová, necessitando de cirurgia cardíaca, recusou previamente a realização de transfusão de sangue por convicção religiosa. O hospital, porém, condicionou a realização do procedimento à assinatura de um termo autorizando a transfusão, mesmo contra sua vontade. Diante da negativa, a paciente recorreu ao Judiciário buscando autorização para realizar a cirurgia sem se submeter à imposição, mas teve o pedido indeferido em todas as instâncias anteriores, o que ensejou recurso extraordinário.
A decisão reafirmou a supremacia da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença, prevista no art. 1º, III, e art. 5º, VI da CF/88, respectivamente, e estabeleceu que o dever do médico de salvar vidas encontra limites na manifestação de vontade do paciente, desde que esta seja livre, consciente, informada e expressa. A recusa pode constar em diretivas antecipadas de vontade, documentos escritos ou registros formais nos prontuários.
No contexto da responsabilidade civil, a decisão do STF impõe deveres e limites claros à atuação médica: caso o médico desrespeite a recusa válida de transfusão, poderá ser responsabilizado civilmente, por violação de direito personalíssimo, ensejando reparação por dano moral, material e eventualmente estético. Nesse cenário, o consentimento informado assume papel jurídico central: sua ausência ou desrespeito à vontade do paciente configura ilícito civil.
De modo inverso, o médico que respeita a recusa de transfusão, mesmo diante de risco de morte, e atua com todos os cuidados exigidos pela medicina, não poderá ser responsabilizado civilmente, pois a decisão do paciente rompe o nexo causal entre a conduta médica e o dano. Trata-se de excludente de responsabilidade, fundada no respeito à autonomia e à liberdade religiosa do indivíduo.
Contudo, há uma distinção importante: quando se trata de menores de idade ou pacientes incapazes, os pais ou responsáveis não podem recusar tratamentos indispensáveis à vida por motivos religiosos, salvo se houver alternativa terapêutica eficaz e segura, reconhecida pela equipe médica. Nestes casos, a recusa pode gerar responsabilidade não apenas civil, mas também penal, caso haja resultado lesivo evitável.
Assim, tanto o erro de tratamento e cirurgia, quanto o desrespeito à recusa informada do paciente, podem gerar responsabilização civil do médico, ainda que por fundamentos distintos. No primeiro caso, pela falha técnica ou omissão no cuidado; no segundo, pela violação de direitos fundamentais. Ambos exigem, contudo, a demonstração do nexo causal e do dano, que permanecem como pilares da responsabilização civil subjetiva no direito brasileiro.
Dessa forma, o julgamento do STF no Tema 1069 não apenas pacífica a questão da recusa de transfusão de sangue por motivos religiosos, como também insere novos elementos interpretativos sobre o alcance da responsabilidade civil médica. Ao médico compete agir com zelo, técnica, prudência e, sobretudo, com profundo respeito à vontade consciente do paciente, pois a falha em qualquer desses aspectos poderá configurar ilícito e gerar o dever de indenizar.
[1] (TJSP; Apelação Cível 1018231-60.2020.8.26.0001; Relator (a): José Joaquim dos Santos; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I - Santana - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/07/2025; Data de Registro: 24/07/2025. O paciente moveu ação de indenização por erro em cirurgia estética. O médico recorreu, mas o Tribunal manteve a condenação, destacando que, embora a responsabilidade do cirurgião estético seja subjetiva, ele tem obrigação de resultado e não conseguiu provar que a falha foi causada por fatores externos. Assim, foi reconhecida sua responsabilidade e o recurso foi negado.
[2] (TJPR - 10ª Câmara Cível - 0032264-88.2020.8.16.0021 - Cascavel - Rel.: SUBSTITUTA LETICIA MARINA CONTE - J. 31.05.2025) A autora alegou erro médico em cirurgia causou lesão no ureter e pediu indenização. No entanto, a perícia concluiu que essa lesão é uma complicação possível e comum, mesmo que o procedimento tenha sido correto. O médico agiu com diligência durante e após a cirurgia, tomando todas as providências adequadas. O Tribunal entendeu que não houve erro médico e negou o pedido de indenização, mantendo a sentença de improcedência. Nos procedimentos não estéticos, o médico tem obrigação de meio, e só responde civilmente se agir com culpa. Se agir corretamente, não responde, mesmo que o resultado não seja o esperado.

