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Análise

Uma Primeira Análise do Provimento nº 196/2025 do CNJ à Luz da Recuperação de Garantias Fiduciárias

Por João Teixeira e Thiago Nishimura

28 de October 15h52

30/06/2025

Neste mês de junho, foi publicado o Provimento nº 196  pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de regulamentar o  procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis  alienados fiduciariamente, nos termos da Lei nº 14.711/23 (Marco Legal  das Garantias) e do Decreto-Lei nº 911/1969. A medida insere-se no  contexto de incentivo à desjudicialização de demandas, especialmente na  seara executiva, promovendo a utilização dos meios extrajudiciais como  alternativa à via judicial na recuperação de créditos.

Neste cenário e à luz da experiência prática na  recuperação de ativos garantidos por alienação fiduciária, algumas  percepções iniciais quanto aos procedimentos previstos no Provimento,  merecem destaque.

Isso porque, embora a intenção do legislador seja  promissora e vanguardista, e as medidas adotadas pelo CNJ para  regulamentar a aplicação da forma de excussão da garantia representem  avanços, ainda persistem dúvidas e incertezas no âmbito prático para os  operadores — credores, devedores e cartorários — em razão da evidente  insegurança jurídica quanto aos efeitos das medidas implementadas.

Também é importante traçar um comparativo entre a nova  sistemática de recuperação extrajudicial de garantias móveis e o  procedimento vigente (Decreto nº 911/69 e alterações). Embora as  discussões judiciais tenham diminuído, ainda há teses e dúvidas que  exigem intervenção do Judiciário, seja para garantir a celeridade, seja  para interpretar corretamente a norma. Ainda assim, o procedimento atual  já conta com maior domínio e segurança quanto à sua formalística.

O novo regramento, embora inovador, apresenta limitações  significativas para sua adoção prática em larga escala. Como abordado  anteriormente, a análise inicial permite identificar três principais  fatores que podem comprometer a efetividade do procedimento: (i)  morosidade procedimental; (ii) alternativas vagas de defesa do devedor; e  (iii) ineficácia diante da posse do bem por terceiros.

Nessa direção, o tempo necessário para a conclusão do  procedimento chama atenção, sobretudo quando comparado ao rito judicial  previsto no Decreto-Lei nº 911/1969. Nos termos do ART. 397-V, II do  Provimento, após a notificação inicial de comprovação da mora do devedor  (art. 397-T, III), há previsão de nova notificação, concedendo-se vinte  dias adicionais para eventual impugnação. Considerando ainda os prazos  operacionais para entrega de notificações, a fase pré-diligência  compromete a celeridade que se espera de um mecanismo alternativo ao  Poder Judiciário.

Quanto aos meios de impugnação, o provimento confere ao  devedor ampla possibilidade de oposição, mediante apresentação de  documentos que demonstrem o pagamento da dívida, alegações de  abusividade ou até o depósito do valor tido como incontroverso. O  oficial do Registro de Títulos e Documentos (RTD) poderá rejeitar  liminarmente a impugnação por ausência de requisitos legais ou, conforme  o caso, intimar o credor fiduciário para manifestação.

Em determinadas hipóteses, inclusive, admite-se a  designação de sessão de mediação ou conciliação extrajudicial, o que,  embora compatível com a política pública de estímulo à autocomposição,  na prática, esvazia a natureza executiva da medida.

Ainda que se reconheçam avanços significativos, como a  possibilidade de inclusão de restrições administrativas no RENAVAM para  impedir a circulação e transferência do bem pelo oficial do RTD, e a  previsão de multa de 5% em caso de descumprimento voluntário da  obrigação, tais medidas são isoladamente insuficientes para conferir  efetividade plena ao procedimento.

A maior limitação, contudo, reside na impossibilidade de  apreensão quando o bem estiver em posse de terceiro. Nos termos do §3º e  §4º do artigo Art. 397-K do Provimento, a diligência somente poderá ser  realizada se houver prévio registro do contrato no RTD competente, e  ainda assim, caso o terceiro possuidor se recuse a entregar o bem, o  oficial deverá apenas lavrar certidão circunstanciada do ocorrido,  remetendo o credor fiduciário à via judicial para adoção das medidas  pertinentes.

A hipótese em questão, ainda que possa configurar delito penal nos termos do art. 171, I e II do  Código Penal, tipificado como estelionato, é extremamente comum na  prática — especialmente em contratos de financiamento de veículos, em  que ainda prevalece a formalística dos registros, diferentemente do que  ocorre com os bens imóveis — o que pode comprometer a efetividade do  procedimento extrajudicial.

O provimento deixou de observar princípios básicos e  norteadores da relação contratual, especialmente a boa-fé. O repasse do  bem para terceiro, que neste caso não pode ser considerado de boa-fé,  condição que só se configuraria se o bem estivesse livre de ônus, traz  ofensa ao pactuado entre as partes.

Se a intenção do legislador foi a de trazer segurança  econômica na concessão do crédito ao buscar oportunizar: celeridade,  menor onerosidade e maior segurança, impossibilitar a retomada do bem  por estar na posse de terceiro é incoerente com o real sentido da  criação do instituto da busca e apreensão extrajudicial, atrelado ao  fato de ter de estar submetido ao crivo discricionário do oficial do  RTD.

Por fim, não há qualquer previsão no Provimento quanto às  medidas essenciais à efetividade da diligência, como a requisição de  reforço policial ou autorização de arrombamento, prerrogativas  disponíveis ao oficial de justiça mas ausentes no procedimento  extrajudicial, o que limita sua eficácia prática.

Portanto, conclui-se que embora o Provimento nº 196/2024  represente um avanço normativo no processo de desjudicialização, a  adoção pelas instituições financeiras exige cautela. O modelo  extrajudicial, como atualmente estruturado, mostra-se menos célere,  menos previsível e, em muitos casos, menos efetivo que o rito judicial  já conhecido na recuperação de créditos.

Além da ineficácia na recuperação do crédito pelo credor, o  procedimento e suas controvérsias podem gerar um efeito reverso:  sobrecarregar o Poder Judiciário com demandas que questionem a  legalidade do rito adotado ou que busquem assegurar o devido processo  legal como forma de garantir a segurança jurídica dos atos praticados.

Recomenda-se que os credores fiduciários avaliem com  cautela a adoção do novo procedimento, ponderando os riscos operacionais  e os custos envolvidos, principalmente considerando as particularidades  de cada operação. A expectativa é que, com a maturação do tema e  eventuais ajustes normativos, o procedimento extrajudicial possa vir a  se consolidar como ferramenta efetiva na recuperação de garantias — o  que, por ora, ainda parece distante da realidade prática.