30/06/2025
Neste mês de junho, foi publicado o Provimento nº 196 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de regulamentar o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis alienados fiduciariamente, nos termos da Lei nº 14.711/23 (Marco Legal das Garantias) e do Decreto-Lei nº 911/1969. A medida insere-se no contexto de incentivo à desjudicialização de demandas, especialmente na seara executiva, promovendo a utilização dos meios extrajudiciais como alternativa à via judicial na recuperação de créditos.
Neste cenário e à luz da experiência prática na recuperação de ativos garantidos por alienação fiduciária, algumas percepções iniciais quanto aos procedimentos previstos no Provimento, merecem destaque.
Isso porque, embora a intenção do legislador seja promissora e vanguardista, e as medidas adotadas pelo CNJ para regulamentar a aplicação da forma de excussão da garantia representem avanços, ainda persistem dúvidas e incertezas no âmbito prático para os operadores — credores, devedores e cartorários — em razão da evidente insegurança jurídica quanto aos efeitos das medidas implementadas.
Também é importante traçar um comparativo entre a nova sistemática de recuperação extrajudicial de garantias móveis e o procedimento vigente (Decreto nº 911/69 e alterações). Embora as discussões judiciais tenham diminuído, ainda há teses e dúvidas que exigem intervenção do Judiciário, seja para garantir a celeridade, seja para interpretar corretamente a norma. Ainda assim, o procedimento atual já conta com maior domínio e segurança quanto à sua formalística.
O novo regramento, embora inovador, apresenta limitações significativas para sua adoção prática em larga escala. Como abordado anteriormente, a análise inicial permite identificar três principais fatores que podem comprometer a efetividade do procedimento: (i) morosidade procedimental; (ii) alternativas vagas de defesa do devedor; e (iii) ineficácia diante da posse do bem por terceiros.
Nessa direção, o tempo necessário para a conclusão do procedimento chama atenção, sobretudo quando comparado ao rito judicial previsto no Decreto-Lei nº 911/1969. Nos termos do ART. 397-V, II do Provimento, após a notificação inicial de comprovação da mora do devedor (art. 397-T, III), há previsão de nova notificação, concedendo-se vinte dias adicionais para eventual impugnação. Considerando ainda os prazos operacionais para entrega de notificações, a fase pré-diligência compromete a celeridade que se espera de um mecanismo alternativo ao Poder Judiciário.
Quanto aos meios de impugnação, o provimento confere ao devedor ampla possibilidade de oposição, mediante apresentação de documentos que demonstrem o pagamento da dívida, alegações de abusividade ou até o depósito do valor tido como incontroverso. O oficial do Registro de Títulos e Documentos (RTD) poderá rejeitar liminarmente a impugnação por ausência de requisitos legais ou, conforme o caso, intimar o credor fiduciário para manifestação.
Em determinadas hipóteses, inclusive, admite-se a designação de sessão de mediação ou conciliação extrajudicial, o que, embora compatível com a política pública de estímulo à autocomposição, na prática, esvazia a natureza executiva da medida.
Ainda que se reconheçam avanços significativos, como a possibilidade de inclusão de restrições administrativas no RENAVAM para impedir a circulação e transferência do bem pelo oficial do RTD, e a previsão de multa de 5% em caso de descumprimento voluntário da obrigação, tais medidas são isoladamente insuficientes para conferir efetividade plena ao procedimento.
A maior limitação, contudo, reside na impossibilidade de apreensão quando o bem estiver em posse de terceiro. Nos termos do §3º e §4º do artigo Art. 397-K do Provimento, a diligência somente poderá ser realizada se houver prévio registro do contrato no RTD competente, e ainda assim, caso o terceiro possuidor se recuse a entregar o bem, o oficial deverá apenas lavrar certidão circunstanciada do ocorrido, remetendo o credor fiduciário à via judicial para adoção das medidas pertinentes.
A hipótese em questão, ainda que possa configurar delito penal nos termos do art. 171, I e II do Código Penal, tipificado como estelionato, é extremamente comum na prática — especialmente em contratos de financiamento de veículos, em que ainda prevalece a formalística dos registros, diferentemente do que ocorre com os bens imóveis — o que pode comprometer a efetividade do procedimento extrajudicial.
O provimento deixou de observar princípios básicos e norteadores da relação contratual, especialmente a boa-fé. O repasse do bem para terceiro, que neste caso não pode ser considerado de boa-fé, condição que só se configuraria se o bem estivesse livre de ônus, traz ofensa ao pactuado entre as partes.
Se a intenção do legislador foi a de trazer segurança econômica na concessão do crédito ao buscar oportunizar: celeridade, menor onerosidade e maior segurança, impossibilitar a retomada do bem por estar na posse de terceiro é incoerente com o real sentido da criação do instituto da busca e apreensão extrajudicial, atrelado ao fato de ter de estar submetido ao crivo discricionário do oficial do RTD.
Por fim, não há qualquer previsão no Provimento quanto às medidas essenciais à efetividade da diligência, como a requisição de reforço policial ou autorização de arrombamento, prerrogativas disponíveis ao oficial de justiça mas ausentes no procedimento extrajudicial, o que limita sua eficácia prática.
Portanto, conclui-se que embora o Provimento nº 196/2024 represente um avanço normativo no processo de desjudicialização, a adoção pelas instituições financeiras exige cautela. O modelo extrajudicial, como atualmente estruturado, mostra-se menos célere, menos previsível e, em muitos casos, menos efetivo que o rito judicial já conhecido na recuperação de créditos.
Além da ineficácia na recuperação do crédito pelo credor, o procedimento e suas controvérsias podem gerar um efeito reverso: sobrecarregar o Poder Judiciário com demandas que questionem a legalidade do rito adotado ou que busquem assegurar o devido processo legal como forma de garantir a segurança jurídica dos atos praticados.
Recomenda-se que os credores fiduciários avaliem com cautela a adoção do novo procedimento, ponderando os riscos operacionais e os custos envolvidos, principalmente considerando as particularidades de cada operação. A expectativa é que, com a maturação do tema e eventuais ajustes normativos, o procedimento extrajudicial possa vir a se consolidar como ferramenta efetiva na recuperação de garantias — o que, por ora, ainda parece distante da realidade prática.

