Decreto regulamentador não pode criar novas obrigações — Um limite constitucional à atuação administrativa | Análise
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Decreto regulamentador não pode criar novas obrigações — Um limite constitucional à atuação administrativa

Por Dra. Marcia Buccolo, advogada do Edgard Leite Advogados Associados

23 de April 17h49

Em qualquer ordenamento jurídico minimamente estruturado sob os princípios da legalidade e da separação dos poderes, o papel de um decreto regulamentador deve ser estritamente o de detalhar a execução da lei, jamais inovar no mundo jurídico com obrigações ou condições não previstas pelo legislador.

Em Acórdão proferido em 28.03.2025, no Processo nº 1041247-53.2020.8.26.0224, a 18ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por unanimidade, acolhendo o voto do Desembargador Relator, Marcelo Theodósio, declarou a ilegalidade do Decreto Municipal por exceder a sua função regulamentar ao impor exigências não previstas em lei.

No caso examinado pelo TJ-SP, o Município de Guarulhos ajuizou execução fiscal contra uma construtora, cobrando valores referentes ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), sob o argumento de que a empresa não teria apresentado as certidões de regularidade fiscal necessárias para obter isenção de imposto concedida por lei municipal.

Ocorre que tal exigência de certidões não constava da lei que instituiu o benefício, mas apenas do Decreto que a regulamentava (Decreto Municipal nº 26.368/2009).

A construtora, em sua defesa, sustentou que o Decreto havia ultrapassado o seu papel meramente regulamentar criando, de forma ilegítima, novas condições não previstas na norma legal.

O Tribunal deu razão à empresa, reconhecendo a ilegalidade da inovação trazida pelo regulamento, em face do limite funcional do Poder Executivo, reafirmando uma diretriz essencial do Direito Administrativo brasileiro: o regulamento é subordinado à lei, e não seu concorrente normativo.

A decisão foi categórica: o regulamento não pode estabelecer requisitos não previstos em lei, sob pena de violar o princípio da legalidade e a hierarquia normativa.

A Tese de Julgamento é no sentido de que é preciso "respeitar a hierarquia das normas, não podendo decretos regulamentares inovar além do previsto em lei."

E assim é justamente para resguardar o fundamento basilar sobre o qual se sedimenta o Estado Democrático: o Princípio da Separação dos Poderes constituídos.

A atividade do Poder Executivo, para ser legítima, deve obedecer aos limites de sua atuação. Vale dizer, a sua atividade regulamentar não pode ser alargada para fins de criar ou restringir direitos, dado que esta é uma tarefa reservada exclusivamente à lei.

A decisão do TJ-SP encontra seu fundamento direto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

É a consagração do princípio da legalidade estrita, especialmente sensível quando se trata de restrições a direitos ou concessão de benefícios.

Neste aspecto, é preciso deixar claro: trata-se de uma competência administrativa cujo exercício deve sempre respeitar os limites da lei e se orientar por sua fiel execução. Nesse sentido, apenas os regulamentos que se submetem integralmente à legislação — os chamados regulamentos executivos — são compatíveis com as exigências da Constituição.

Não cabe aos órgãos administrativos inovar na ordem jurídica, criando, por iniciativa própria, direitos, deveres ou obrigações. Tal atuação extrapolaria sua função constitucional, afrontando princípios fundamentais como a separação dos Poderes (art. 2º) e o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II), ambos expressamente previstos na Constituição Federal.

O referido Acórdão faz referência expressa ao ensinamento de Odete Medauar segundo o qual "O decreto que baixa regulamento tem a finalidade de explicitar a lei e prever as medidas para sua execução, não podendo contrariá-la ou dispor além de seus preceitos; deve, pois, cingir-se ao teor da lei" (Direito Administrativo Moderno, 8ª edição, pág. 169).

A decisão do TJ-SP é especialmente relevante em tempos nos quais administrações públicas, muitas vezes pressionadas por demandas arrecadatórias ou políticas, recorrem a regulamentos e atos infralegais para criar exigências indevidas ou dificultar o acesso a benefícios fiscais previstos em lei.

No caso concreto, a exigência de apresentação de certidões fiscais — embora não prevista na norma de isenção — foi utilizada como fundamento para negar o benefício à construtora. Tratava-se de um típico exemplo de "interpretação criativa" da Administração para obstruir direitos legítimos.

O Poder Judiciário, nesse cenário, agiu como freio essencial aos abusos regulatórios e reafirmou a supremacia da legalidade estrita.

Nesse sentido, o precedente ora analisado reforça o imperativo de se preservar a segurança jurídica e a coerência normativa.

O STJ tem entendimento consolidado no sentido de que um dos poderes atribuídos à Administração Pública consiste no Poder Regulamentar, o qual é exercido pelo Chefe do Poder Executivo.

Por meio dele, são editadas normas visando à fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF). Tais normas podem ser de materializadas por diversos instrumentos: Decretos, resoluções ou portarias. Contudo, para serem válidos e legítimos, em todas essas hipóteses, o ato normativo não pode inovar no ordenamento jurídico; não podem impor obrigações, conceder benefícios, estabelecer restrições, ou impor penalidades não previstas em lei, sob pena de violação ao art. 5º, II e 37, caput, da CF. (REsp Nº 1.969.812 - MG (2021/0337472-0) Relatora: Ministra Nancy Andrighi).

Decretos, portarias e resoluções administrativas não são fontes autônomas de obrigação, e seu papel deve restringir-se à fiel execução da lei — jamais à sua reescrita.

A extrapolação desses limites compromete não apenas a legitimidade do ato administrativo, mas também mina a confiança do administrado no Estado de Direito.

O controle judicial desse tipo de abuso é, portanto, não apenas legítimo, mas essencial à manutenção da ordem constitucional.

Para o operador jurídico que atua na defesa de interesses de contribuintes, concessionárias ou empresas que se relacionam com o Poder Público, é indispensável compreender e invocar, com firmeza, os limites impostos aos regulamentos.

Quando estes instrumentos se afastam da lei e inovam, não apenas se tornam nulos de pleno direito, como expõem a Administração à responsabilização jurídica.

A lição é direta e perene: regulamento que cria obrigação é ilegítimo. A lei é o limite.