É presente, no ideário popular, que uma pessoa que sofre cobrança indevida teria o direito à devolução em dobrodaquele valor. Em grande parte dos casos, no entanto, a expectativa se frustra e, sabendo disso, inúmeros prejudicados se limitam a pleitear a devolução simples, ou seja, a receber de volta apenas o valor pago indevidamente. Por qual motivo isso acontece?
É verdade que, de acordo com a legislação, quem cobra indevidamente tem a obrigação de devolver em dobro a quantia. Há previsão tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor. Mas essa é apenas parte da história. A outra parte é que, segundo os tribunais, as cobranças regidas pelo Código Civil, quando indevidas, ensejariam devolução em dobro apenas quando comprovada a má-fé de quem a cobrou; quanto às relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, havia certa controvérsia quanto a esse requisito.
Após anos de pronunciamentos conflitantes, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu acórdão de mais de 100 páginas, no qual reenfrentou o tema para superar a controvérsia quanto à necessidade (ou desnecessidade) do elemento volitivo para justificar a repetição dobrada dos valores cobrados indevidamente. A solução se dá, de forma diferente, de acordo com a natureza da contratação.
Para as relações regidas pelo Código Civil, a repetição em dobro do indébito permanece sujeita à comprovação de culpa, seja negligência (descuido, desatenção ou falta de precauções necessárias), imprudência (precipitação ou falta de cautela) ou imperícia (ação desprovida da técnica necessária).
Por outro lado, o STJ estabeleceu que não é necessária demonstração de culpa para a repetição em dobro do indébito nas relações submetidas ao Código de Defesa do Consumidor, sejam relativas à prestação de serviços públicos ou privados.
A única distinção decorrente da natureza pública ou privada dos serviços é que, de acordo com o STJ, tratando-se de cobranças relativas a serviços públicos, ainda que prestados por particulares, sempre se justificou a repetição em dobro, sem qualquer demonstração de culpa do fornecedor, uma vez que o poder público e as concessionárias respondem objetivamente pelos danos causados a usuários e não usuários e, igualmente, devem ser responsabilizadas pela cobrança indevida, ou seja, sem a necessidade de demonstração de que agiram com culpa.
Soma-se a isso a necessidade imposta pelo microssistema de proteção dos consumidores, que são, de acordo com a decisão do STJ, "dezenas de milhões dos destinatários finais dos serviços públicos, afligidos por cobranças indevidas, personificam não só sujeitos vulneráveis, como também sujeitos indefesos e hipossuficientes econômica e juridicamente, ou seja, carentes em sentido lato, destituídos de meios financeiros, de informação e de acesso à justiça".
Quanto aos contratos que envolvem serviços não públicos, a solução dada pelo STJ é quase a mesma: o consumidor indevidamente cobrado tem direito à repetição em dobro, mas, como à época do julgamento, ainda havia dúvida a esse respeito, a norma passou a vincular todos os demais tribunais quanto às cobranças realizadas a partir da publicação do acórdão (30/03/2021) e as anteriores podem, ou não, receber o mesmo tratamento, a depender do entendimento de cada magistrado.
Por fim, é importante deixar claro: nem toda cobrança indevida ensejará repetição em dobro. O fornecedor poderá se eximir dessa obrigação quando demonstrar que agiu de boa-fé.
Se nos contratos regidos pelo Código Civil exige-se a demonstração da culpa de quem realizou a cobrança, a exigência se inverte nos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor: cabe à defesa do fornecedor explicitar as razões objetivas que o levaram a, de boa-fé, proceder à cobrança.
O texto faz referência ao acórdão proferido pela Corte Especial do STJ no julgamento do EREsp 1.413.542-RS, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, red. acórdão Min. Herman Benjamin, j. 21/10/2020.