Multiparentalidade e afetividade: os reflexos jurídicos do reconhecimento da filiação socioafetiva | Análise
Análise

Multiparentalidade e afetividade: os reflexos jurídicos do reconhecimento da filiação socioafetiva

Por Dra. Renata Santos Barbosa Catão, advogada do Edgard Leite Advogados Associados

11 de April 16h53


A paternidade socioafetiva é um instituto que tem se consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, refletindo a evolução das relações familiares e a valorização da afetividade na definição da filiação.

Ela ocorre quando uma pessoa estabelece, de forma voluntária e duradoura, um vínculo de pai ou mãe com uma criança ou adulto, independentemente da existência de um laço biológico ou adotivo que os una.

O fundamento jurídico desse instituto reside no princípio da afetividade, na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal - CF) e na proteção integral da criança e do adolescente (art. 227, da CF, e Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA).

No Brasil, a jurisprudência tem sofrido alterações significativas no sentido de reconhecer e assegurar esse tipo de vínculo.

Paternidade socioafetiva, multiparentalidade e a jurisprudência:

Desde a decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 898.060/SC, em 2016, consolidou-se o entendimento de que a multiparentalidade é possível, permitindo que uma pessoa tenha no registro civil tanto pais biológicos quanto socioafetivos, simultaneamente.

Nesse sentido, de acordo com o STF, a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais (Tema 622).

Concretizando o entendimento da Suprema Corte, mais recentemente, a 3ª Vara da Família de Belém do Pará, no processo nº 0825049-81.2021.8.14.0301 concedeu a uma mulher o reconhecimento do vínculo materno-filial estabelecido entre ela e sua tia materna, falecida em 2020.

Considerando o conjunto probatório do vínculo, composto por documentos de comunicações entre sobrinha, mãe e tia; fotografias e depoimentos de testemunha, a Justiça do Pará garantiu a inclusão da maternidade socioafetiva da tia no assento de nascimento, mantendo a maternidade biológica da autora, configurando, assim, hipótese de multiparentalidade materna.

No caso, a reconhecida, autora da ação, foi criada por sua tia materna desde o seu nascimento, uma vez que a sua mãe biológica não tinha condições de assumir sozinha os encargos da maternidade.

Com o passar dos anos, a autora ficou cada vez mais distante de sua mãe biológica, assumindo, a tia, de forma plena, os cuidados da menina.

Critérios e procedimento para o reconhecimento:

Para que haja o reconhecimento da paternidade socioafetiva, além da já mencionada existência da afetividade contínua, duradoura e voluntária entre o pai/mãe socioafetivo e a criança, é preciso que haja a manifestação pública do vínculo, isto é, é preciso que aquela relação seja conhecida e aceita pela comunidade.

Há que se demonstrar, ainda, a chamada "posse de estado de filho", decorrente da relação de afeto e do tratamento entre as partes como pai e filho.

Além disso, deve haver a intenção inequívoca de assumir a paternidade e, claro, sempre considerar o melhor interesse da criança, ou seja, é imprescindível verificar se estabelecer a relação com aqueles pais será benéfico para o seu desenvolvimento do ponto de vista psicológico, emocional e social.

Acerca do procedimento para reconhecimento da paternidade socioafetiva, tem-se que ela pode ocorrer de duas formas: extrajudicialmente e judicialmente.

Desde 2017, com a publicação do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é possível o reconhecimento de paternidade socioafetiva pela via extrajudicial.

Para o reconhecimento pela via administrativa, o interessado pode comparecer a um Cartório de Registro Civil e formalizar a filiação mediante apresentação de provas documentais e testemunhais.

Se o reconhecido for maior de idade, é necessário seu consentimento expresso.

O reconhecimento pela via judicial, por sua vez, terá cabimento quando houver contestação de terceiros ou necessidade de comprovação aprofundada do vínculo, hipótese em que o juiz poderá determinar estudos psicossociais e ouvir testemunhas para confirmar a existência da relação socioafetiva.

Consequências do reconhecimento:

O reconhecimento da paternidade socioafetiva gera os mesmos efeitos legais da filiação biológica ou adotiva, considerando o princípio da igualdade entre os filhos, previsto no §6º, do artigo 227, da Constituição Federal.

Nesse contexto, os filhos reconhecidos por vínculo afetivo terão direito ao nome e sobrenome do pai/mãe socioafetivo(a); aos direitos e deveres alimentares; ao direito sucessório (herança) e a direitos previdenciário, como pensão por morte e benefícios sociais.

Para os pais socioafetivos, o reconhecimento implica, evidentemente, a assunção de obrigações, como o dever de sustento, guarda, educação e proteção em todos os aspectos, de modo a assegurar o desenvolvimento salutar da criança e do adolescente.

Conclusão:

A evolução da jurisprudência sobre o assunto nos últimos anos reflete um avanço na proteção das relações socioafetivas, garantindo que a filiação seja reconhecida com base no amor, na convivência e na responsabilidade, e não apenas em critérios biológicos.

Contudo, o exercício da parentalidade socioafetiva ainda encontra importantes desafios, que vão desde a oposição por parte dos pais biológicos e conflitos no ambiente familiar até dificuldades práticas, como demonstrar a existência do vínculo afetivo, enfrentar a lentidão dos trâmites legais e superar preconceitos sociais.

Apesar desses entraves, o reconhecimento jurídico dessa forma de vínculo representa um passo essencial para a garantia dos direitos e da proteção integral da criança.

Assim, a possibilidade de formalização desse vínculo, seja pela via judicial ou extrajudicial, representa não apenas o avanço de um direito, mas a consolidação de relações construídas no afeto e na convivência.

De qualquer forma, a complexidade do assunto, tanto do ponto de vista emocional, quanto jurídico, aconselha que cada situação seja analisada com sensibilidade e segurança técnica.

Daí a importância de contar com a orientação jurídica adequada como fator decisivo para garantir que os direitos das partes envolvidas, especialmente os da criança ou do adolescente, sejam plenamente resguardados.