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Análise

As lições do RHC 158.580 do STJ

Por Bruno César Gonçalves da Silva e André Myssior

13 de February 17h05

As lições do RHC 158580/BA do STJ: Pretos e pardos sob suspeita - o perfilamento racial na persecução penal brasileira

"(...) Infelizmente, ter pele preta ou parda, no Brasil, é estar permanentemente sob suspeita. (...)"[1]

É notória a praxe de a persecução penal se iniciar por um tipo de abordagem policial popularmente conhecida como "dura", "geral", "revista", "baculejo" ou "esculacho", calcada na genérica alegação de que o indivíduo submetido ao procedimento se encontrava em "atitude suspeita".

Segundo a disciplina do artigo 244 do Código de Processo Penal, a busca ou revista pessoal - bem como a veicular - somente se reveste de legalidade quando precedida de "fundada suspeita",justificada pelas circunstâncias do caso concreto, de que o cidadão abordado esteja na posse de armas ou de outros materiais que constituam corpo de delito, evidenciando ser urgente a realização da diligência.[2].

A "fundada suspeita", portanto, deve ser alicerçada dado concreto que justifique, objetivamente, a afetação da intimidade do cidadão (artigo 5º X, da Constituição Federal), não bastando meras conjecturas ou impressões subjetivas. E mais, essa fundada suspeita deve se referir, como dito, à "posse de arma proibida ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito".

Exige-se, portanto, uma vinculação da medida à sua finalidade legal probatória, sendo inadmissíveis abordagens e revistas exploratórias, baseadas em suspeição genérica sobre indivíduos, atitudes ou situações. Assim, ao contrário do que muitos pensam, no âmbito do patrulhamento ostensivo não há suporte normativo para buscas pessoais de "rotina" ou "praxe", aleatoriamente e sem prévia base concretamente justificada.[3]

Não obstante os limites normativos sucintamente relembrados, a pesquisa "Elemento Suspeito" abordada no Acórdão do RHC 158580/BA do STJ -, desenvolvida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), revela que "a revista corporal costuma ser reservada a quem a polícia acha que tem "cara de criminoso" ou que está "escondendo algo", nas palavras dos próprios agentes. Entre os que já foram revistados, metade de todos os abordados, 84% eram homens, 69%, negros, e 70% eram moradores de favelas e bairros da periferia. Em contrapartida, somente 10% dos brancos que ganham mais de dez salários mínimos são revistados." (Disponível em: Negros são os mais abordados pela polícia no Rio, afirma pesquisa - Estadão (estadao.com.br) , acesso em: mai. 2023).

Ou seja, pesquisas comprovam algo que sempre saltou aos olhos no Brasi, país de capitalismo tardio, que timidamente começa a tentar enfrentar as sequelas sociais deixadas pela escravatura A abordagem policial "de rotina", largamente empregada, dado ao racismo estrutural sobre o qual se ergueu a sociedade brasileira, demonstra o"viés da suspeição racial apriorística"[4].

Aqueles indivíduos que não possuem pele alva, possuem "pele-alvo", sendo recorrente nas  instâncias policiais referências à percepção de um "elemento suspeito de cor padrão", denotando de modo inequívoco o emprego do perfilamento racial como referência central da suspeita.

Ante o quadro sinteticamente exposto, observa-se que a discricionariedade policial na identificação de suspeitos, pautada em significativa medida pelo perfilamento racial, vulnera sobremaneira os Direitos Fundamentais à intimidade, à privacidade, à inviolabilidade do domicílio e à liberdade (Direitos Humanos) dos afrodescendentes.

Por tal razão o Acórdão do RHC 158580/BA do STJ buscou fixar marco interpretativo da legislação federal apto a (re)orientar as praxes persecutórias: "3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de "fundada suspeita" exigido pelo art. 244 do CPP.".

A observância desse marco interpretativo visa não só preservar os citados direitos afetados pela busca pessoal, mas também prevenir e dissuadir incondutas policiais no campo da ilicitude probatória, vez que o Acórdão paradigma assentou que "5. A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência."

A atual Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca dos limites às buscas pessoais, veiculares e domiciliares, bem como em relação ao reconhecimento de pessoas, tem promovido um verdadeiro acerto de contas do Processo Penal brasileiro com a sua própria história, com o condão de estancar o fluxo de uma política criminal de segregação dos indesejáveis através da construção, reforço e manutenção de um estereótipo criminoso racista, cuja marca principal é que "todo camburão tem um pouco de navio negreiro"[5].

Não é bastante, porém, a definição desses precedentes nos Tribunais Superiores, se os pretos e pardos precisarem, a cada abordagem, trilhar o caminho até aquelas Cortes., o que não raramente nem chega a lhes ser possível. É preciso criar e incentivar mecanismos para assegurar que as instâncias inferiores observem a jurisprudência, seja pela via judicial ou até mesmo pela correciocional.

E, não é só. Não basta soltar o preso e absolvê-lo depois de dois, três anos ou mais. A promoção da reponsabilidade civil do Estado, conforme o art. 37, § 6º, da Constituição Federal - e as competentes ações de regresso - servirão, de um lado, como reparação à vítima do racismo estrutural e, de outro, como efeito dissuasório dos agentes públicos que teimam em desprezar os Direitos Humanos.

Oxalá esse "acerto de contas" nos reserve um futuro melhor!

[1] BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma). Acórdão do RHC 158580/BA. Relator Ministro Rogério Schietti Cruz, jul. 19/04/2022, pub. 25/04/2022, Brasília: STJ, 2022. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 25/05/2023.

[2] Iden: "1. Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) - baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto - de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência."

[3]Iden: "2. Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à "posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito".Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como "rotina" ou "praxe" do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata."

[4]Iden.

[5] Título da letra composta por Marcelo Yuka e eternizada na interpretação magistral do grupo O Rappa.