Neste ano, o Estatuto da Igualdade Racial completa 14 anos de promulgação. Embora seja um dos principais marcos normativos da legislação antidiscriminatória no Brasil, muitas das suas disposições não possuem força coercitiva1, o que gera dúvidas acerca da sua efetividade. Afinal, qual o real impacto do Estatuto da Igualdade Racial no mundo jurídico?
Para começarmos a responder a esta pergunta, precisamos primeiro compreender um pouco do contexto histórico no qual o Estatuto da Igualdade Racial se insere. Dizemos "um pouco", pois é impossível resumir séculos de história das relações raciais nesse breve texto. Na maior parte deste período, a existência do racismo foi negada pelo Estado e pela sociedade brasileiros, em especial sob o argumento da existência de uma suposta democracia racial.
A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez, reconheceu o racismo como crime inafiançável e imprescritível, cujas condutas típicas foram descritas na Lei 7.716/89 (a Lei Caó). Ainda, estabeleceu como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todas as pessoas sem quaisquer preconceitos de raça, cor, origem, idade, sexo e demais formas de discriminação.
Após longos anos de lutas e tensões do movimento social negro (que não aprofundaremos aqui), o Estado brasileiro reconheceu internacionalmente, também pela primeira vez, a existência do racismo no nosso país, comprometendo-se perante a comunidade estrangeira com o seu combate por meio de políticas públicas de promoção da igualdade racial. Esse reconhecimento deu-se durante a Conferência de Durban, realizada em setembro de 2001.
A partir de então, é possível observar uma inflexão no debate jurídico quanto às relações raciais e ao combate à discriminação no Brasil. Em 2003, tivemos a aprovação da Lei 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da "História e Cultura Afro-Brasileira" na rede de ensino. Em 2004, a Universidade de Brasília foi a primeira instituição de ensino superior pública federal a adotar cotas raciais para o ingresso na graduação. A medida gerou intensos e calorosos debates na sociedade brasileira, com argumentações pró e contra, incluindo questionamentos sobre a sua constitucionalidade.
Nesse contexto, também em 2003, foi apresentado pelo Senador Paulo Paim o projeto de lei que, em 2010, deu origem ao Estatuto de Igualdade Racial. O texto final é fruto de sete anos de debates, tensões e concessões, no bojo do contexto apresentado brevemente
nos parágrafos anteriores. Portanto, ainda que muitas das suas disposições não possuam força coercitiva, o documento não deixa de ser um marco histórico importante para a consolidação de políticas e legislações antirracistas no Brasil.
Por exemplo, em seu art. 31., o Estatuto da Igualdade Racial previu a obrigatoriedade da titulação dos territórios quilombolas e o reconhecimento da propriedade definitiva. Em seu art. 17, previu o reconhecimento das sociedades e clubes negros com trajetória histórica comprovada como patrimônio histórico e cultural. Ainda, em suas disposições finais, incluiu condutas entre o rol dos crimes de racismo previstos na Lei Caó, em especial quanto à adoção de barreiras discriminatórias no acesso ao emprego e na promoção funcional.
O Estatuto da Igualdade Racial também permitiu novos avanços na legislação antidiscriminatória, ao incluir disposições como a possibilidade da adoção de ações afirmativas no âmbito público e privado (art. 4º, II e VII; art. 39)2. Embora o estatuto não tenha previsto como tais ações afirmativas seriam implementadas, fato é que, em 2012, obtivemos o reconhecimento da constitucionalidade da adoção de cotas raciais em universidades pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 186). A decisão foi seguida da promulgação da Lei 12.711/2012, que prevê a obrigatoriedade da reserva de vagas em instituições públicas federais de ensino técnico e superior para negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, oriundos de escola pública.
Mais recentemente, observamos o reconhecimento jurídico da possibilidade da adoção de ações afirmativas também pelo setor privado, por meio da Nota Técnica 1/2018 do Grupo de Trabalho (GT) de Raça da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (COORDIGUALDADE) do Ministério Público do Trabalho (MPT). À época, a divulgação de processo seletivo afirmativo exclusivo para pessoas negras, para a vaga de trainee na Magazine Luiza, gerou uma ampla reação da sociedade. Se parte dela parabenizou a medida, outra parte acusou a companhia de "racismo reverso". Nesse contexto, a Coordigualdade divulgou a nota técnica mencionada,
argumentando pela possibilidade da adoção de ações afirmativas pelo setor privado, com fundamento no Estatuto da Igualdade Racial3.
Assim, respondendo à pergunta formulada no primeiro parágrafo, afirmamos que o impacto do Estatuto da Igualdade Racial no ordenamento jurídico é tanto direto, no que diz respeito às disposições com força vinculante, quanto indireto, no que tange a construção de um arcabouço jurídico que promova a equidade racial e dê azo à conquista de novos direitos. Certo é que o combate à discriminação racial e a promoção da equidade são tarefas complexas, árduas e que demandam uma ação longa e resiliente de todos os setores sociais. Cabe a nós, como advogados e advogadas, nos engajarmos nessa caminhada.
Fabiano Machado da Rosa é sócio fundador da PMR Advocacia. Como advogado empresarial atua nas áreas de Compliance, Compliance Antidiscriminatório, Gestão de Crises e Proteção de Pessoas Expostas Publicamente. É Pós-graduado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e em Compliance na área de saúde pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Autor do livro "Compliance Antidiscriminatório: Lições para um Novo Mundo Corporativo" e "Gestão de Crise e Diversidade - 21 estratégias para prevenção, gestão e transformação de crises discriminatórias" , ambos publicados pela editora Thomson Reuters. Professor dos Programas de Pós-graduação em Compliance no: Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês, ESPM Direito São Paulo, Damásio Educacional e Fundação Getúlio Vargas São Paulo Educação Executiva.
Luana Pereira da Costa é advogada no Petri & Machado da Rosa Advocacia, Líder do Núcleo Antidiscriminatório. Professora Universitária. Escritora e Palestrante. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestre em Sociologia, ambos pela UFRGS. Pesquisadora nas áreas de relações raciais e de gênero, direito e sociologia. Autora do livro "Vivências e Percursos de Mulheres em Situação de Violência: Um Olhar Interseccional", publicado pela Editora Letramento, Selo Casa do Direito. Autora do livro "Compliance Antidiscriminatório: Lições práticas para um novo mundo corporativo" publicado pela Editora Thomson Reuters.
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