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Resolução online de Disputas e Smart Contracts: Quimera ou Realidade não tão distante?

Por Nathália de Carvalho Grizzi Proto

30 de November de 2023 10h

Não há dúvidas de que, no nosso mundo atual, a globalização é uma realidade. Apesar do surgimento de alguns movimentos nacionalistas recentes, o processo de globalização se instalou no mundo moderno e espraiou os seus efeitos no mundo pós-moderno e, assim, foi responsável por consumar drásticas mudanças em todas as relações sociais, sejam elas entre Estados, entre Estados e particulares ou ainda entre particulares, sob as mais diversas perspectivas.

Para alguns, "globalização" é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, "globalização" é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo "globalizados" - e isso significa basicamente o mesmo para todos.

A velocidade com que as informações são transmitidas, a permanente conectividade e a ausência de fronteiras são apenas alguns dos elementos deste universo globalizado, em que as mais diversas transações ocorrem ao redor do mundo, a todo tempo, e tudo é disseminado em tempo real.

Tudo isso é potencializado quando observamos o fenômeno em conjunto com a democratização cada vez maior da internet. Hoje, usa-se a internet para praticamente tudo e não há mais fronteiras para a realização de negócios. Duas pessoas em lugares completamente opostos no planeta podem se conectar em tempo real e formalizar operações de compra e venda de mercadorias, de prestação de serviços, dentre outros, muitas vezes amparadas por contratos digitais.

É diante desse contexto globalizado e hiperconectado que surgem cada vez mais transações de caráter transnacional ("cross border transactions"), sejam entre empresas (business to business - "B2B") ou entre empresas e consumidores finais (business to commerce - "B2C"), e se torna cada vez mais evidente o surgimento de um ambiente comercial supranacional e de fenômenos normativos dissociados dos ordenamentos jurídicos nacionais.

O e-commerce cresce no mundo inteiro, numa velocidade surpreendente, e é possível dizer que é um caminho sem volta, sobretudo depois dos efeitos econômicos experimentados mundialmente durante e pós pandemia de covid-19.

Como consequência direta do aumento das cross border transactions, especialmente por meio do e-commerce, pode-se observar também um crescente número de disputas advindas dessas novas relações e, consequentemente, de uma demanda cada vez maior por mecanismos alternativos de resolução de disputas que sejam rápidos, eficientes e, sobretudo, de baixo custo. É nesse cenário que ganha especial importância o inovador mecanismo de Resolução Online de Disputas, também conhecido como "ODR" (do inglês "Online Dispute Resolution").

Foi diante desse contexto que a United Nations Comission on International Trade Law (UNCITRAL), após a quadragésima terceira sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada entre 21 de junho e 9 de julho de 2010, ficou encarregada de se debruçar sobre o assunto, ante a sua relevância para o comércio internacional, e montou um grupo de trabalho específico para analisar as questões relativas à ODR.

Do trabalho desse grupo especializado resultou a publicação, em abril de 2017, da Nota Técnica sobre Resolução Online de Disputas. Essa nota técnica, que serviu de subsídio para o presente trabalho e para as considerações que serão apresentadas, comporta, em princípio, apenas standards técnicos e não vinculantes, mas que servem de guia para os procedimentos ora em análise e que não devem ser ignorados.

No presente artigo, busca-se apresentar uma visão geral da ODR, avaliar as suas vantagens e desvantagens e, ainda, propor uma mudança paradigmática, sob a perspectiva do crescimento das cross borders transactions, da maior utilização da ODR e, em especial, da tecnologia do blockchain, fazendo uma reflexão, ao fim, sobre o papel da UNCITRAL no desenvolvimento e uniformização desses mecanismos dentro do contexto do comércio internacional.

A RESOLUÇÃO ONLINE DE DISPUTAS ("ODR")

Visão Geral

Antes de se adentrar propriamente na análise da ODR, é importante fazer uma breve digressão sobre os meios alternativos de resolução de disputas (do inglês, Alternative Dispute Resolution - "ADR"), já que se pode dizer que a ODR é uma espécie do gênero ADR.

A ADR compreende todas as formas de resolução de disputas que não envolvem uma decisão imposta pelo Poder Judiciário às partes. As formas mais conhecidas são negociação direta, conciliação, mediação e arbitragem.

Na negociação direta, as partes, entre si, chegam a um consenso e, voluntariamente e sem a intervenção direta de terceiros, põem fim à controvérsia por meio de um acordo.

Na conciliação, as partes em geral não possuem vínculo anterior (relações de consumo, por exemplo) e há a presença de um terceiro independente (conciliador), que pode propor soluções para a controvérsia e assim ajudar na autocomposição, sem qualquer tipo de imposição, de constrangimentos ou de intimação das partes.

Já na mediação, as partes, via de regra, possuem um vínculo anterior e, por motivos os mais diversos possíveis, perderam a capacidade de comunicação para atingir uma solução para a controvérsia advinda de tal relação. Nesses casos, o terceiro independente (mediador) tem uma atuação distinta da atuação do conciliador, pois a sua principal função é tentar auxiliar as partes a reestabelecerem o diálogo, para que, assim, possam tentar, por si, atingir soluções consensuais com benefícios mútuos.

A arbitragem, por sua vez, tem um procedimento mais formal, no qual as partes submetem a questão controversa a um ou mais árbitros e este(s) analisa(m) a questão e chega(m) a uma decisão final para a resolução do conflito. Esta decisão arbitral é vinculante e deve ser obedecida pelas partes, podendo, inclusive, ser executada pela parte vencedora, usando o Poder Judiciário.

Partindo agora para a análise da ODR, pode-se dizer que estão presentes todos os elementos da ADR tradicional, com o acréscimo, no entanto, da tecnologia para auxiliar no processo de solução da controvérsia.

ADR foca em manter a resolução de disputas longe de litígios judiciais e de decisões baseadas no processo decisório dessas cortes. A ODR, ao designar o cyberespaço como o local para a resolução de disputas, estende esse processo adaptando os processos tradicionais offline da ADR, como negociação, mediação e arbitragem.

É importante, contudo, destacar que a ideia é que a ODR seja mais do que simplesmente uma ADR virtual. Na realidade, a ODR é um processo multidisciplinar, que pode envolver diversas fases no processo de solução da controvérsia, tais como negociação direta, mediação e arbitragem. Ademais, a proposta é que a ODR tenha um desenrolar rápido, eficiente, prático, de baixo custo, totalmente seguro e estritamente confidencial.

Além desses elementos, para que haja uma ODR, é fundamental a existência de uma plataforma tecnológica, também chamada de plataforma ODR. A tecnologia, nesses casos, é vista como a quarta parte do processo de resolução da controvérsia, além das partes e do terceiro independente, presentes nas ADRs tradicionais (BRANNIGAN, 2007, p. 6916).

ADR offline envolve um triângulo - as duas partes e o terceiro independente. A ODR introduz um novo elemento no processo, a quarta parte, que é a tecnologia que trabalha com o terceiro independente. A quarta parte não substitui o terceiro independente e não é co-igual em influência, mas funciona como um aliado, colaborador e parceiro. A quarta parte é essencialmente uma versão mais sofisticada do lápis e da caneta.

Assim, pode-se dizer que a tecnologia é usada como aliada na solução da controvérsia, na medida em que proporciona uma maior velocidade, uma menor burocracia e uma maior segurança, ante a imparcialidade da rede e da plataforma ODR.

Importante destacar que também se faz necessária a presença de um administrador da plataforma ODR ("administrador ODR"). O administrador ODR faz a gestão da plataforma tecnológica em si, sendo uma figura distinta da própria plataforma e dos terceiros independentes que participam do processo.

Todos esses elementos em conjunto parecem estar em consonância com a realidade atual de crescimento e consolidação das cross border transactions, inclusive no âmbito do e-commerce, e parecem apontar para uma tendência de consagração da ODR como mecanismo eficaz de solução das controvérsias advindas dessas transações.

Aliando-se a tudo isso, ainda há o fato de que os mecanismos tradicionais de solução de controvérsias, especialmente o judiciário, não possuem os recursos necessários para atender à dinamicidade dessas transações e muitas vezes não oferecem uma solução adequada para as disputas advindas dessas relações comerciais eletrônicas, seja pela especificidade das questões ou até mesmo pela velocidade pretendida pelas partes.

Cabe esclarecer, por derradeiro, que nem todos os conflitos são passíveis de serem solucionados por ODR. Em regra, o âmbito de aplicabilidade das ODRs se restringe a disputas comerciais. Ou seja, em geral, esse método alternativo de solução de controvérsias está restrito a disputas relacionadas a direitos patrimoniais e disponíveis, tal como na ADR.

Princípios Aplicáveis

Assim como a ADR, a ODR também é regida por princípios gerais que norteiam a atuação das partes envolvidas no processo. Em geral, pode-se dizer que a ODR deve respeitar os princípios da transparência, accountability, independência, imparcialidade, autonomia das partes, confidencialidade, eficiência, efetividade, celeridade e economia.

A transparência e accountability são princípios complementares, que buscam conferir uma maior governança ao processo de resolução online de disputas. Nesse sentido, a plataforma ODR e o administrador ODR devem divulgar qualquer tipo de relação eventualmente existente com fornecedores, para que as partes que pretendem utilizar o serviço da plataforma ODR estejam previamente informadas acerca de potenciais e/ou eventuais conflitos de interesses.

Com relação à independência e imparcialidade, complementando os princípios da transparência e da accountability, é fundamental que as plataformas e os administradores ODR, bem como os terceiros envolvidos nesse processo, tais como conciliadores, mediadores ou árbitros, sejam independentes e imparciais. Caso haja qualquer tipo de desconfiança sobre o respeito a esses princípios, às partes deve ser facultado opor exceções, assim como nos procedimentos tradicionais de solução de conflitos.

Outro princípio fundamental para a ODR é o da autonomia da vontade. As partes devem expressamente consentir com a utilização do mecanismo alternativo de resolução de disputas. Esse mecanismo não pode ser imposto, de modo que as partes devem ter a total liberdade de aderir ou não a ele. Além disso, exercitando a plena autonomia da vontade, as partes possuem uma maior flexibilidade de atuação e podem propor e adotar soluções criativas e adaptáveis às situações específicas sob disputa.

A confidencialidade também é outro elemento bastante relevante na ODR. Ao optarem por um método alternativo de resolução de disputas, as partes, em geral, buscam o sigilo da controvérsia e da solução adotada para o caso. Contudo, uma questão importante e bastante atual diz respeito à efetiva proteção de dados no ambiente virtual.

Como podem as pessoas terem certeza de que os dados enviados e recebidos não foram adulterados e de que terceiros não autorizados não tiverem acesso a essas informações?

Aqui novamente a encriptação desempenha um importante papel na garantia da confidencialidade e da proteção dos dados. Encriptação torna possível para o mediador e as partes se comunicarem, sem o risco de terceiros não autorizados terem acesso a essa comunicação, criando assim uma comunicação de dados segura.

Este questionamento está sempre na pauta do dia, especialmente após os reiterados escândalos decorrentes de vazamento de dados, "inaugurados" com o WikiLeaks e agora assistidos quase que diuturnamente por todos nós.

Ao se debruçar sobre a questão, o que se observa é que a proposta para garantir a confidencialidade dos dados é voltar para a própria tecnologia que originou o problema. Os administradores ODR devem garantir às partes que a plataforma ODR tem a capacidade de embarcar tecnologia criptográfica suficiente - por meio da encriptação - para garantir a manutenção da confidencialidade dos dados. Trata-se, portanto, de uma questão de confiança na própria tecnologia que originou o problema, o que pode parecer, a uma primeira vista, um grande contrassenso, mas que, na prática, parece ser uma opção factível do ponto de vista tecnológico, ante todos os avanços experimentados.

Não há, contudo, como fazer, nesse momento, nenhum tipo de previsão, seja por limitações de ordem técnica ou mesmo pela necessidade de observação da situação por um determinado lapso temporal. O que se pode afirmar é que a proteção de dados é, sem dúvidas, um desafio para a consolidação da ODR e que a superação desse desafio está intimamente ligada à manutenção da confiança dos próprios usuários nas tecnologias aplicadas na plataforma ODR.

Outros princípios que ainda merecem ser explorados são os da eficiência, efetividade, celeridade e economia, que se apresentam, na prática, de forma indissociável. Por essa razão, todos serão tratados no presente artigo de forma conjunta.

Por eficiência, entende-se a utilização ótima dos recursos digitais disponíveis para garantir a resolução de disputas na plataforma ODR. Essa utilização eficiente dos recursos, por sua vez, leva à celeridade na resolução da questão e, consequentemente, à efetividade do próprio procedimento.

Por sua vez, ao se agregar todos esses fatores, consegue-se atingir uma maior economia no procedimento em si. Isto porque a utilização eficiente da plataforma digital dispensa as partes de estarem presentes, fisicamente, em audiências de procedimentos judiciais ou extrajudiciais e, consequentemente, garantem uma maior economia e praticidade, na medida em que os custos de deslocamento ou até mesmo de contratação de advogados são facilmente dispensados na ODR.

Essa economia representa uma grande vantagem competitiva da ODR, pois muitas vezes os custos dos processos tradicionais de resolução de disputas superam o valor dos bens ou dos serviços em discussão, especialmente se considerarmos as transações ocorridas no âmbito do e-commerce (LOUTOCKÝ, 2015, p. 244).

Fases da ODR

Como já anunciado acima, a ODR é um processo multidisciplinar, normalmente dividido em fases. Nesse tópico, busca-se fazer uma breve análise dessas fases e do procedimento operacional delas.

A primeira fase, em geral, é a fase de negociação direta entre as partes. Essa negociação pode se dar de forma totalmente automatizada ou, ainda, de forma assistida, a depender da plataforma ODR utilizada.

Na negociação automatizada usada por algumas plataformas, as partes submetem as suas propostas de acordo e o sistema, por meio de logaritmos, realiza o cruzamento dos dados. Estando as propostas dentro de uma faixa aceitável para as partes, o acordo é fechado automaticamente.

Na negociação assistida, o procedimento se inicia com a notificação de demanda enviada pela parte requerente. Depois disso, o sistema notifica a parte requerida do início do procedimento e abre o prazo para que as partes negociem diretamente e cheguem a uma autocomposição. Esses prazos não são peremptórios, de modo que podem ser flexibilizados pelo administrador ODR, por um período razoável.

A segunda fase do procedimento tem início quando as partes não chegam a um acordo na fase de negociação ou quando elas assim decidem. A esta segunda fase chamaremos aqui de negociação facilitada, seguindo a denominação adotada pela UNCITRAL na sua nota técnica sobre a ODR.

Nesse estágio de negociação facilitada, há a presença de um terceiro independente, geralmente indicado pelo administrador ODR. A recomendação da UNCITRAL é que sejam fornecidos dados desse terceiro independente, para que as partes possam, caso julguem necessário, objetar a indicação. Esse fornecimento mínimo de informações e a possibilidade de questionamento da imparcialidade do terceiro estão em consonância com os princípios aplicáveis à ODR, conforme já explorado anteriormente, em especial o da transparência.

Se, mesmo após a instalação da negociação facilitada, não houver acordo entre as partes, pode-se, ainda, partir para uma terceira fase do procedimento, a depender da plataforma ODR.

Em geral, essa terceira fase é a arbitragem online, mas é possível que as plataformas ofereçam outras formas de resolução do conflito. Na nota técnica da UNICTRAL, inclusive, esta fase não está definida, havendo apenas informação de que as plataformas e os administradores ODR informarão às partes sobre essa fase final do procedimento.

Caso a fase final do procedimento seja uma arbitragem online, deverão ser seguidas todas as regras da plataforma ODR e deste tipo de procedimento em específico. Esta fase pode ser, por conseguinte, um pouco mais formal do que as outras duas fases e possuir regras mais rígidas.

Atualmente, várias plataformas já oferecem esses serviços de resolução online de disputas, inclusive com a possibilidade de realização de arbitragem online, tais como American Abrtitration Association (AAA), International Chamber of Commerce (ICC),  Hong-Kong International Arbitration Centre e a World Intellectual Property Organization (WIPO) Arbitration and Mediation Center para os litígios envolvendo questões relativas à propriedade intelectual.

O que se percebe no mercado, portanto, é uma forte tendência das câmaras arbitrais que ainda não oferecem esse tipo de solução passarem a ter também plataformas ODR para solução de controvérsias. Tudo aponta no sentido de que essa nova realidade tende a se consolidar e ainda a expandir a sua atuação. Trataremos mais detidamente sobre as perspectivas para a ODR nos tópicos seguintes.

PRINCIPAIS VANTAGENS E DESAFIOS DA ODR

As vantagens da ODR já foram bastante exploradas ao longo do presente estudo. Dentre elas podemos citar a simplicidade, a velocidade e a flexibilidade do procedimento, o baixo custo ante a desnecessidade de presença física das partes, a possibilidade de combinação de processos híbridos, além de várias outras.

Também é um ponto bastante positivo a possibilidade de as partes exercitarem a plena autonomia da vontade, com maior participação ativa e direta na resolução dos conflitos e com uma maior flexibilidade e criatividade para propor soluções para as questões controversas. Tudo isso favorece o fortalecimento das relações comerciais e a construção positiva de um cenário de cross border transactions, pautado, sobretudo, na boa fé das relações.

Ademais, quando as próprias partes chegam à satisfação da demanda, nota-se uma tendência de maior efetividade na resolução do conflito. Ou seja, em geral há uma maior percepção das partes de que a solução foi adequada e, por consequência, há a tendência ao cumprimento voluntário do que foi acordado, diferentemente de quando há a imposição da solução pelo poder judiciário, por exemplo.

Os desafios, por outro lado, estão em sua maioria vinculados à própria utilização da tecnologia. Em um artigo antigo, porém ainda bastante atual, o professor da Universidade de Richmond, Joel B. Eisen, questionou se estaríamos prontos para o que ele chamou à época de cybermediação (EISEN, 1998). Nesse artigo, o professor pontua que "a tecnologia deve progredir a um ponto que replicar as interações face a face seja universal, barato e facilmente entendido por cada participante" .

A despeito do questionamento ter sido feito em 1998 - quando o progresso da tecnologia nem de longe se assemelhava ao que vivenciamos hoje - muitas questões por ele levantadas ainda são aplicáveis nos dias atuais.

Dentre os maiores desafios da ODR, podemos pontuar os seguintes:

(1) impessoalidade do terceiro independente que assiste as partes no processo, uma vez que a utilização da tecnologia impossibilita o contato direto e cara a cara das partes. Muitos críticos desse sistema de resolução de conflitos asseveram que se perde bastante da essência da própria mediação quando há esse distanciamento físico entre as partes. Assim, por consequência, há uma maior dificuldade na construção de uma relação de confiança com o mediador, um dos elementos essenciais para, muitas vezes, garantir o sucesso dessa forma de resolução de disputas (GOODMAN, 2003, p. 10).

(2) a possível inacessibilidade de algumas pessoas a computadores conectados à internet e possíveis discrepâncias de infraestrutura, especialmente se considerarmos transações B2C entre empresas localizadas em países superdesenvolvidos e consumidores situados em países em desenvolvimento (como nos casos de transações entre empresas situadas nos Estados Unidos e consumidores na Índia, por exemplo).

(3) problemas para confirmar a identidade das partes, já que podem ser utilizados mecanismos tecnológicos para ocultação da verdadeira identidade, inclusive por meio da utilização de pseudônimos;

(4) dificuldade de obter o consentimento das partes quanto ao processo de resolução de disputas;

(5) quedas de comunicação entre a rede de computadores que pode, em muitos casos, resultar em dúvidas sobre a manutenção ou aceite de propostas de acordo; e

(6) dificuldade de comunicação, posto que muito da comunicação pode se perder na troca de e-mails ou de outros mecanismos escritos, sem a oralidade inerente aos procedimentos ADR offline típicos. Além disso, a diferença de culturas e de percepções entre as partes e entre elas e o terceiro independente é outro fator bastante relevante na hora de se estabelecer uma comunicação clara, eficiente e focada na resolução da questão.

Outro desafio que merece nota diz respeito à confidencialidade dos dados. Como já explorado no tópico 2.2, acima, hoje em dia pairam muitas dúvidas sobre a real confidencialidade dos dados disponíveis na rede mundial de computadores. Após vários escândalos e vazamentos de informações, torna-se cada vez mais um desafio convencer os usuários da segurança e proteção dos dados disponibilizados no ambiente virtual.

Esta preocupação, sem qualquer perspectiva de esgotamento neste artigo, merece uma longa análise e reflexão, sobretudo dos interessados em navegar em tal mercado e dos seus usuários.

Trata-se, portanto, de uma questão que ainda comporta bastante discussão e que depende de uma série de fatores para que possamos fazer qualquer tipo de previsão. O que se pode afirmar, por enquanto, é que talvez esse seja um dos maiores desafios a serem enfrentados pelas plataformas e administradores ODR.

Por fim, mas não menos relevante, é importante pontuar o desafio da execução das decisões decorrentes das ODRs, caso não haja o cumprimento voluntário pelas partes.

Em virtude dos limites da jurisdição territorial, da soberania dos Estados e da novidade da ODR, não existem instrumentos jurídicos globais apto a regular questões legais relacionadas com a ODR de caráter transnacional. Isto significa que a escolha da lei ou jurisdição aplicável ou o reconhecimento e a execução das decisões da ODR são todos determinados com base na lei nacional, o que pode frequentemente levar a complicações em situações transnacionais.

Nessas situações específicas, poderá existir conflitos das mais diversas naturezas, inclusive quanto à legislação aplicável, uma vez que não há ainda uma norma legal supranacional indiscutivelmente aplicável a tais decisões. O que existe hoje é uma regulamentação técnica da UNCITRAL, conforme já mencionado, mas que não é vinculante, nem tampouco endereça as questões aqui apontadas.

Assim, caso não haja um voluntário cumprimento das decisões das ODRs pelas partes e caso a dificuldade de execução de tais decisões permaneça, pode-se estar diante de uma grande fragilidade para a própria subsistência do sistema de resolução online de disputas.

Considerando que essa questão ainda não foi equacionada - nem há uma perspectiva imediata de equacionamento - propõe-se adiante a possibilidade de uma mudança paradigmática, com o intuito de garantir o enforcement dessas decisões por meio da utilização da tecnologia do blockchain.

A POSSIBILIDADE DE UMA MUDANÇA PARADIGMÁTICA

Os Smart Contracts

A tecnologia do blockchain, denominada de distributed ledger technology (em tradução livre: tecnologia do livro-razão distribuído), é baseada no conceito de um banco de dados aberto, de forma distribuída, descentralizada e continuamente atualizada, utilizando o método da criptografia para garantir a segurança e a transparência do ambiente transacional digital. A proposta do blockchain é garantir cada vez mais o desenvolvimento das relações diretas entre as partes (peer-to-peer transactions), sem a necessidade de participação de quaisquer intermediários, tais como bancos ou órgãos governamentais.

Com o blockchain, a própria rede de usuários verifica a autenticidade das transações, que são únicas, inalteráveis, rastreáveis e marcadas digitalmente, tudo isso graças ao sistema dos blocos em cadeia (tradução literal do termo "blockchain"). Essas transações podem envolver não somente cifras, mas contratos, imóveis, posses em geral. Os governos, inclusive, estão apostando em revoluções significativas na esfera pública, seja por meio de transformações nas relações entre governos e particulares em termos de compartilhamento de dados, transparência e confiança, ou até mesmo por meio de votações eleitorais e pagamento de impostos através de blockchain.

O primeiro e mais emblemático exemplo da tecnologia do blockchain é a criptomoeda - também chamada de moeda virtual ou de token digital - conhecida como Bitcoin. Criado em 2008 por Satoshi Nakamoto (pseudônimo do(s) criador(es) até hoje ainda não identificado(s)), o Bitcoin é um protocolo peer-to-peer (chamado simplesmente de "P2P"), que permite que todos os usuários da rede sejam servidores e clientes ao mesmo tempo, com o objetivo de assegurar a realização de transações em uma moeda totalmente digital e universal. Com isso, o Bitcoin garante que todas as suas transações ocorram entre os particulares, em qualquer lugar do mundo, de forma descentralizada, registrada e transparente - ainda que por meio de pseudônimos para identificação das partes. E mais: tudo é feito de forma independente, isto é, o protocolo não pode ser controlado ou desativado por nenhuma autoridade ou governo central.

Além do Bitcoin, já existem vários outros tokens digitais sendo criados no ambiente do blockchain diariamente. Isso se dá por meio de uma Oferta Inicial de Moeda - tradução livre de Initial Coin Offering ("ICO") - ao mercado global, garantindo aos compradores tokens utilizando a tecnologia do blockchain. Esse novo setor em ascensão já movimentou e promete movimentar vultosos valores econômicos ao redor do mundo.

Outro exemplo de utilização da tecnologia do blockchain e que pode se relacionar com o desenvolvimento da ODR são os chamados smart contracts. São contratos gerados online, também por meio de protocolo, que são auto executáveis, geralmente vinculados a criptomoedas. A ideia dos smarts contracts é facilitar as negociações online, aumentar a confiabilidade dessas transações e, assim, contribuir para o desenvolvimento do mercado das cross border transactions.

O smart contract é um software automático construído com base no protocolo do blockchain; basicamente, smart contracts se tornaram possíveis por meio da computação de propósito geral que ocorre "no" blockchain. Eles podem ser utilizados para alocação de moedas digitais entre duas partes, quando os requerimentos estabelecidos no programa/contrato são cumpridos. Em suma, smart contracts são ferramentas contratuais programáveis, eles são contratos embutidos de codificação de softwares. Assim, o smart contract pode incluir o próprio arranjo contratual, a governança das condições necessárias para que as obrigações contratuais se realizem e a execução efetiva do contrato.

É justamente nessa função de auto execução dos smart contracts que conseguimos enxergar um ponto de intersecção com a ODR.

Os Smart Contracts como um Mecanismo de Execução das Decisões das ODRs

Partindo da problemática da dificuldade de execução das decisões decorrentes das ODRs exposta no tópico acima, conseguimos vislumbrar a possibilidade de proposição de uma mudança paradigmática aliando a tecnologia aplicada aos smart contracts aos mecanismos de enforcement dessas decisões, utilizando-se, para tanto, das plataformas ODR, que já operam com base em tecnologia.

Isto porque, ainda que não haja uma positivação ou pacificação de normas - nos planos nacional ou supranacional - tratando especificamente sobre qual a lei aplicável às decisões das ODRs, não há como deixar de reconhecer que existe uma regulação das partes nesses casos e, muitas vezes, do próprio comércio internacional. Regulação essa que muitas vezes tende, na realidade, à autorregulação do próprio mercado.

E é justamente neste ponto que é interessante trazer um conceito suscitado pelo doutrinador alemão Gunther Teubner em seu artigo "Breaking Frames: Economic Globalisation and the Emergence of lex mercatoria", publicado em 2002, no European Journal of Social Theory: o paradoxo do contrato sem lei (tradução livre de "contrat sans loi"). Segundo o autor, os contratos globais adquiriram a capacidade de se auto validar, na medida em que desenvolveram sistemas próprios de hierarquia, de tempo e, o mais importante de todos, de externalização.

Por que essa externalização é tão importante para a criação de um Direito autenticamente global? A resposta é: não apenas porque se desdobra o paradoxo da auto-validação contratual, mas também porque cria uma dinâmica de interação entre uma ordem jurídica "oficial" e uma "não-oficial", que é constitutiva do Direito Moderno. Ela introduz ainda uma diferenciação interna entre a produção do direito organizada e a espontânea, que seria o equivalente funcional do "Direito Estatal".

Nessa perspectiva de autorregulação do comércio transnacional e de auto validação dos contratos globais, as tecnologias do blockchain, em especial os smart contracts, e os mecanismos de resolução online de disputas parecem ocupar um papel intrigante e merecer uma análise mais aprofundada. Seriam esses mecanismos, afinal, uma representação prática das teorias desenvolvidas por Teubner?

Trata-se, sem dúvidas, de uma possibilidade de mudança paradigmática, sendo certo, contudo, que vários elementos ainda carecem de validação tecnológica e, sobretudo, prática e de uniformização de leis.

Diante de todos esses fenômenos globais e dessa crescente disseminação das relações transnacionais e de mecanismos alternativos e digitais de resoluções de disputas, parece inevitável que o Direito seja compelido a se debruçar sobre as relações surgidas a partir da aplicação dessas novas tecnologias e, consequentemente, sobre os seus efeitos.

E é justamente nesse ponto e sob essa perspectiva que é possível propor uma atuação positiva da UNCITRAL, considerando especificamente a recente tendência já apontada pelo órgão ao editar, em abril de 2017, a Nota Técnica sobre Resolução Online de Disputas.

O PAPEL DA UNCITRAL

Na Nota Técnica sobre a Resolução Online de Disputas, a UNCITRAL tratou o tema com uma abordagem exclusivamente técnica, sem a conotação de regulamentação vinculante ou de estabelecimento de uma lei uniforme. Observe-se:

Propósito da Nota Técnica

3. O propósito dessa Nota Técnica é fomentar o desenvolvimento da ODR e de assistir os administradores ODR, as plataformas ODR, terceiros independentes e as partes integrantes do procedimento de ODR. [...]

Efeito Não Vinculante da Nota Técnica

6. A Nota Técnica é um documento descritivo. Ela não pretende ser um documento exaustivo ou exclusivo, nem é passível de utilização como regra de qualquer procedimento de ODR. Ela não impõe nenhum obrigação legal vinculantes às partes ou a quaisquer pessoas e/ou entidades administrando ou possibilitando a realização de um procedimento de ODR, e não implica nenhuma modificação nas regras de ODR que as partes já tenham eventualmente selecionado.

Contudo, a partir da análise dos potenciais conflitos e desafios oriundos da implementação e crescimento das ODRs e da tecnologia do blockchain, em especial dos smart contracts, o que se observa é que há um hiato no cenário global que carece de uma maior definição ou regulamentação do assunto a nível transnacional. Tal regulamentação seria especialmente útil para fins de construção de uma governança digital.

É nesse ponto que parece fundamental analisar a possibilidade de a UNCITRAL desempenhar um papel mais positivo, editando, por exemplo, uma proposta de lei uniforme aplicável a esse novo cenário global e pensando especialmente na aplicabilidade da tecnologia do blockchain e dos seus impactos no meios alternativos de resolução online de disputas, tal como fez com a arbitragem internacional.

Por outro lado, também é importante analisar o papel do excesso de regulação no setor. Neste ponto, é inevitável se pensar numa encruzilhada. Se, de um lado, parece natural que haja algum tipo de regulamentação, para, assim, tentar mitigar eventuais conflitos, abusos, fraudes, mau uso, dentre outros, por outro, é preciso dosar e avaliar o impacto dessa regulação, uma vez que regulação em excesso, especialmente nesse estágio de consolidação e crescimento das ODRs e do uso da tecnologia do blockchain, pode sufocar a própria evolução natural da aplicação dessas novas ferramentas digitais.

A despeito de todos esses questionamentos e proposições, não há como, nesse momento, firmar qualquer posicionamento ou fazer qualquer previsão sobre o assunto, posto que todas as questões ainda se apresentam de forma muito embrionária. Em todo caso, parece uma questão de tempo até que a UNCITRAL, órgão que parece estar tão conectado com as novidades que circundam o ambiente comercial global, estenda a sua atuação e análise sobre o novo mecanismo de resolução online de disputas e sobre a constante ascensão das cross border transactions e desse novo ambiente digital.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se analisar o mundo pós-moderno, dificilmente é possível dissociar as novas tendências do comércio internacional dos fenômenos globalizatórios. Cada vez mais há o rompimento das fronteiras e das barreiras entre Estados, pessoas e organizações e o comércio internacional tem encontrado um campo largo na esfera transnacional.

Com essa crescente expansão do comércio internacional, especialmente do e-commerce, também há o crescimento, quase que umbilical, das disputas advindas dessas novas transações.

É justamente nesse campo de potenciais conflitos que os mecanismos de Resolução Online de Disputas ganham especial relevância, uma vez que se apresentam como uma alternativa rápida, eficiente, segura e econômica para solucionar tais questões.

A despeito de todas as vantagens advindas dos mecanismos de ODR, também há grandes desafios a serem vencidos, tais como segurança de dados, democratização da utilização da tecnologia, superação de questões relacionadas à impessoalidade desses procedimentos ante a distância física entre as partes e os terceiros independentes que podem auxiliar na solução das questões controversas, dentre outros.

Questão particularmente interessante e que merece relevo diz respeito à possibilidade de execução das decisões decorrentes das ODRs. Atualmente, vários problemas são enfrentados quando não há o cumprimento voluntário de tais decisões, seja porque não há a definição de qual a lei aplicável ou ainda porque não se sabe a que jurisdição recorrer, ante essa indefinição legal.

É justamente nesse contexto que se pode enxergar uma possível janela para a propositura de uma mudança paradigmática, tentando, para tanto, aliar a tecnologia do blockchain, em especial os smart contracts e as plataformas ODR.

Smart contracts são programas auto executáveis que contêm todas as codificações das condições acordadas entre as partes. Assim, caso haja o descumprimento dessas condições, é possível fixar parâmetros nesse programa, para que as obrigações sejam executadas automaticamente, em geral vinculadas a criptomoedas.

Considerando que as plataformas ODR também são movidas por tecnologia, não parece muito distante ou mesmo idílico afirmar que é possível criar parâmetros de smart contracts nessas plataformas para garantir a auto execução das decisões advindas desses procedimentos.

No entanto, todas essas proposituras esbarram em questões de ordem técnica e prática que ainda carecem de implementação e validação. Não há como, neste momento, fazer qualquer tipo de previsão, sem incorrer na falha científica da mera especulação.

Em todo caso, sem prejuízo de revisão desse posicionamento em momento posterior, a depender das eventuais aplicabilidades das tecnologias ora em análise, cabe dar um passo adiante e lançar uma provocação: seriam os smart contracts a aplicabilidade prática do paradoxo do contrato sem lei (tradução livre de "contrat sans loi") defendido pelo doutrinador alemão Gunther Teubner? Esse questionamento parece particularmente intrigante se levarmos em consideração a afirmação feita pelo autor no sentido de que os contratos globais adquiriram a capacidade de se auto validar, na medida em que desenvolveram sistemas próprios de hierarquia, de tempo e, o mais importante de todos, de externalização.

Outro ponto que merece um passo adiante diz respeito ao papel desempenhado pela UNCITRAL ante esse contexto global de crescimento das cross border transactions, das disputas decorrentes dessas transações e, ainda, dos mecanismos alternativos de resolução online de disputas.

Em abril de 2017, o referido órgão publicou a Nota Técnica sobre Resolução Online de Disputas com algumas orientações técnicas sobre o assunto, sem, contudo, conferir ao referido documento o caráter vinculante ou proposta de lei uniforme.

A partir da análise do papel desempenhado pela UNCITRAL em outras matérias e considerando que há um hiato substancial na regulamentação supranacional dessas questões, parece razoável pensar que a regulamentação, por um organismo internacional tal como a UNCITRAL, seria especialmente útil para fins de construção de uma governança digital.

De outro lado, não se pode deixar de pontuar que um excesso de regulação nesse momento de ebulição tecnológica poderia embotar o pleno desenvolvimento dessas tecnologias, em especial das ODRs e das mais variadas manifestações do blockchain.

Assim, o que se observa é que o cenário atual ainda é muito incerto e que todas as proposituras que se possa fazer sobre o tema são muito incipientes. Em todo caso, assiste-se, sem dúvidas, a um movimento revolucionário que terá repercussões - diretas ou indiretas - nas relações comerciais transnacionais e no mundo jurídico como um todo.