As atualizações conferidas à Lei de Falências, Recuperações Judiciais e Extrajudiciais, por meio da Lei n. 14.112/2020, buscaram adequar os procedimentos à evolução jurídica e econômica vivenciada desde a promulgação da Lei originária 11.101/2005. Sua nova forma prestigia a mediação, a preservação da empresa em crise, a segurança aos envolvidos e também prevê medidas e mecanismos visando dar maior transparência e efetividade ao procedimento.
E em que pese não prever expressamente em seu texto a figura do "Watchdog"(na tradução literal, "Cão-de-caça"), os Tribunais Pátrios têm se utilizado deste personagem para dar credibilidade aos casos com maior repercussão econômica e social, bem como quando houver dúvidas acerca da viabilidade do processo de soerguimento.
Isto porque, conforme levantamento feito pela revista Valor Econômico[1]a partir do apontamento pelo Serasa Experian, os pedidos de Recuperação Judicial cresceram 105,2% em maio/2023, na comparação com o mesmo mês de 2022. Em fevereiro, o aumento registrado já se encontrava em franco crescimento, apontando o percentual de 87,7%, nas Recuperações Judiciais e 38,7%, nas Falências[2].
O cenário econômico nacional contribui para o aumento dos processos de reestruturação financeira e empresarial, mas não é o único fator da crise, que também pode ser ocasionado por má-gestão, atos fraudulentos e esvaziamento patrimonial. Por tal motivo, hoje exige-se maior cuidado quanto aos procedimentos, especialmente quando estes apresentam um passivo expressivo.
No Brasil é possível listar, como exemplo, quatro grandes grupos que pediram o benefício judicial para se soerguerem, cuja somatória das dívidas atinge quase R$ 200.000.000.000,00 (duzentos bilhões de reais). Sendo elas: a) Odebrecht (R$ 80 bilhões); b) Samarco (R$ 50 bilhões); c) Americanas (R$ 43 bilhões); e d) Sete Brasil (R$ 19.3 bilhões).
O volume de empresas que buscam o soerguimento através dos institutos da Lei n. 11.101/2005 cresce rapidamente, enquanto valores cada vez mais significativos são discutidos em tais procedimentos.
Ocorre que o desafio para os interessados, especialmente nas Recuperações Judiciais envolvendo tais passivos bilionários, não está apenas na defesa do seu crédito dentro do procedimento e na formatação da melhor proposta para recebimento do que lhe é devido, mas, principalmente, na fiscalização dos motivos da crise, o movimento financeiro/contábil da empresa insolvente, as movimentações societárias, a forma de liquidação do patrimônio, entre outros motivos.
Com isto, deu-se origem à figura do Watchdog, que se trata objetivamente de um agente fiscalizador do procedimento. Este tem como finalidade analisar todo o escopo da Recuperação Judicial de forma ativa, ou seja, o Watchdog atuará internamente na empresa em crise, analisando todas as movimentações empresariais (sendo elas contábeis, societárias, inventários de bens, novas projeções, movimentações financeiras e etc...), para além de tomadas de decisões visando o interesse dos credores em observância da lei, para real cumprimento do plano da recuperação judicial.
Conforme mencionado, ainda que não previsto expressamente na legislação, o agente fiscalizador passou a ser nomeado e utilizado nos casos de maior relevância financeira, ou seja, nos procedimentos cujo passivo é expressivamente vultoso.
Sua primeira aparição em solo brasileiro se deu em dezembro de 2017, na Recuperação Judicial da PDG Realty, que teve como intuito fiscalizar as mais de 30 mil transações mensais que ocorreram durante o processo. Este procedimento apresentava um passivo concursal de cerca de R$ 5 bilhões, atingindo aproximadamente 22.000 credores.
Vale ressaltar que o pedido de intervenção de um Agente de Monitoramento, não necessariamente deve ocorrer antes ou logo após a implementação de um plano de recuperação judicial. Contudo, tal como defendido na Recuperação Judicial da Viação Itapemirim, hoje convolada em Falência e onde a nomeação se deu após seis anos da sua propositura, percebe-se que quanto mais cedo for exercida a fiscalização, maiores serão as probabilidades de cumprimento do plano de recuperação judicial e êxito no procedimento, beneficiando todos os envolvidos.
Trazendo para um cenário mais atual, os credores da Recuperação Judicial do Grupo Americanas (Lojas Americanas), que pode representar o procedimento de maior visibilidade no país atualmente, conseguiram em 22/06/2023, junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[3], determinar a contratação de um observador judicial para atuar como Agente de Monitoramento no concurso de credores. O acolhimento dos pedidos se deu em razão das constatações de fraude e incontáveis dúvidas sobre a consolidação das demonstrações financeiras e atuação dos seus gestores, demonstrando uma clara necessidade de maior fiscalização.
A falta de credibilidade em decorrência não só do expressivo passivo (R$ 43 bilhões), mas, também, pelas diversas notícias de possível manipulação dos números, fez com que os credores exigissem a participação de um Watchdog, preservando os interesses coletivos dentro da Recuperação Judicial e conferindo segurança e transparência no decorrer do procedimento, antes que as propostas aos credores fossem submetidas à votação pela coletividade.
Necessário registrar, ainda, que referida nomeação não representa uma intervenção na administração do Grupo, pois a gestão empresarial é preservada para possibilitar a manutenção das atividades e geração de capital para cumprimento das obrigações que assumirá com seus diversos credores.
Ressalta-se, também, que o Judiciário pode e deve nomear um Watchdog sempre que necessário, especialmente nos casos de maior relevância social e que haja fundado receio de prejuízo ao patrimônio das empresas em crise. Assim agindo, as partes envolvidas no procedimento, independente do volume do seu crédito e sua participação, terão um aliado na fiscalização do cumprimento da lei, evitando a vulneração dos institutos de insolvência.
Dessa forma, conclui-se que a participação do Watchdog é, de fato, benéfica à coletividade de credores, bem como representa a vontade do legislador, que visou preservar função social da empresa - aqui não apenas a devedora, mas todos os envolvidos no processo -, bem como evitará a utilização espúria dos processos de soerguimento. Caso nenhuma fraude seja constatada, restará ratificada a situação de crise que se encontra a empresa ou grupo empresarial, direcionando à constatação da viabilidade econômica e recuperacional, confirmando ser aquele procedimento a única forma de equalizar as obrigações pendentes, o que prestigia sua utilização cada vez mais, emprestando segurança jurídica ao instituto.
A presente análise se deu com base no Agravo de Instrumento nº 2193774-29.2021.8.26.0000; de Relatoria do Eminente Desembargador AZUMA NISHI, pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, no recurso julgado em 09/03/2022, bem como do Agravo de Instrumento nº 0045600-39.2023.8.19.0000, de Relatoria da Eminente Desembargadora LEILA SANTOS LOPES, julgado pela 8ª Câmara de Direito Privado do Estado do Rio de Janeiro, em 22/06/2023.
[1] https://valor.globo.com/financas/noticia/2023/06/26/pedidos-de-recuperacao-judicial-dobram-em-maio.ghtml
[2] https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/
[3]Agravo de Instrumento n. 0045600-39.2023.8.19.0000