Split Payment divide especialistas e expõe dilemas da nova estrutura tributária | Análise
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Split Payment divide especialistas e expõe dilemas da nova estrutura tributária

Painelistas da Fenalaw 2025 questionam constitucionalidade e viabilidade operacional do modelo que transformará radicalmente o sistema tributário brasileiro até 2033

30 de October 21h45

A reforma tributária brasileira, considerada uma das mais ambiciosas do mundo, enfrenta questionamentos profundos sobre sua viabilidade operacional, impactos no fluxo de caixa das empresas e até mesmo sua constitucionalidade. Durante a Fenalaw 2025, maior evento jurídico da América Latina, especialistas de diferentes áreas apresentaram um panorama que mescla preocupação com oportunidades, mas deixou claro: o Brasil está prestes a testar um modelo tributário sem paralelo no mundo.

O coração da reforma: Split Payment sob escrutínio

O split payment — mecanismo que divide automaticamente o pagamento entre fornecedor e fisco no momento da transação — é apontado como o "coração da reforma tributária", mas também como seu maior desafio. "Não existe nenhum outro modelo, nenhum país no mundo que adotou um modelo de tributação como pretende adotar o Brasil", alertou Ricardo Anderle, advogado do Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados, durante painel sobre o tema.

Em entrevista exclusiva, Paulo Duarte Filho, sócio do Stocche Forbes Advogados e membro do grupo de trabalho da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), foi direto ao ponto: "O melhor sistema de pagamento do mundo está aqui. Então se tem alguém que vai conseguir implementar isso, é o Brasil. A questão é quando, porque a gente tem muito desafio até chegar lá."

Três pilares de um ecossistema revolucionário

Paulo Duarte identificou três pilares fundamentais que comporão o novo ecossistema tributário:

  • Split Payment: a repartição automática do tributo no momento da liquidação financeira;
  • Crédito Voucher: crédito condicionado ao pagamento efetivo do débito anterior;
  • Apuração operação a operação: fim da apuração puramente por competência.

"Em 170 países do mundo com IVA (Imposto sobre Valor Agregado), nenhum país exige o pagamento do imposto para ter crédito. Nenhum. Nós vamos ser o primeiro", destacou o advogado, ressaltando a singularidade do modelo brasileiro.

Quem é o dono do dinheiro?

Ricardo Anderle levantou uma das questões mais controversas do debate: a constitucionalidade do split payment.

O advogado identificou duas premissas que, segundo ele, são falsas e embasam o modelo:

  • Primeira premissa: O contribuinte seria apenas de direito, não de fato, não arcando com o ônus financeiro. "É uma ficção. Isso é planejamento tributário em PowerPoint. Não é assim que funciona. Quem dita o preço é o mercado", contestou Anderle, citando estudos da União Europeia que demonstram que o contribuinte absorve sim o ônus econômico.
  • Segunda premissa: O contribuinte seria "parceiro do governo". "A relação entre o Estado e contribuinte não é de parceria. Parceria pressupõe confiança. E o split é baseado na desconfiança", criticou, apontando a falta de reciprocidade: "O Estado recebe sim ou sim. Se eu forneço um bem e não recebo do meu comprador, eu tenho que pagar o tributo também. Cadê a reciprocidade aqui?"

Usando a célebre frase do médico e alquimista Paracelso, Anderle fez um alerta: "A diferença entre o veneno e o remédio é a dose. A gente tem um remédio aqui, mas a gente tem que manerar na dose, senão a gente vai envenenar todos os bons contribuintes."

As modalidades do split payment

Paulo Duarte detalhou as três modalidades de split payment previstas, cada uma com implicações distintas:

Split Super Inteligente (ou Justo): No momento da transação (por exemplo, um Pix na farmácia), o arranjo de pagamento consulta em milésimos de segundo a Receita Federal e o Comitê Gestor do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) para verificar se o estabelecimento tem créditos tributários. A operação é splitada considerando o valor líquido real.

Paulo aponta o problema: "Imagina você está na fila da farmácia, na fila do supermercado e o sistema apresenta um problema e a informação não vai, não volta e o sistema trava. Você imagina o transtorno econômico que seria isso?"

Split Inteligente (ou simplificado): É o backup. Quando a informação não volta, o sistema usa apenas o preço bruto, sem considerar créditos. "O meu grande medo é que aquilo que deveria ser um backup, só se o outro não funcionar, começa a virar regra", alertou o advogado.

Split Presumido: Baseado em médias setoriais, entrará em vigor posteriormente.

Para Paulo, a boa notícia é que a implementação será gradual. "Em 2027 nós vamos dar início a alguns arranjos de pagamento. Não serão todos e não serão todas as operações."

O cronograma previsto:

  • Início: Operações B2B (entre empresas)
  • Primeiro meio: Boleto (liquidação em 48 horas)
  • Segundo: TED (liquidação em 3 horas)
  • Incógnita: Pix (muito rápido, ainda não há solução definitiva)
  • Cartão: Pouco relevante no B2B (apenas 6-7% das transações)
  • Operações B2C (entre empresa e consumidor): Fora da primeira fase de implementação

O impacto no fluxo de caixa

Se há algum consenso entre os especialistas, é sobre o impacto devastador no fluxo de caixa das empresas. Luis Wulff, CEO da Tax.Co, foi categórico:

Paulo Duarte usou o exemplo do setor têxtil para ilustrar o problema: "O fornecedor gasta fazendo a produção. Depois começa a vender, começa a receber, depois a margem vai diminuindo." De acordo com ele, com o split a dinâmica mudará radicalmente.

O "golpe" na antecipação de recebíveis

Um dos impactos mais diretos será na antecipação de recebíveis, ferramenta essencial para o capital de giro de milhares de empresas. "A base da antecipação é o valor da venda com tributo. Agora não existe tributo como base porque o tributo já vai ser deduzido. Então o valor que o estabelecimento comercial vai ser capaz de antecipar para se financiar é muito menor", explicou Paulo Duarte.

Para Paulo, o resultado será ruim para o comerciante e para o banco. Ele afirma que por conta dessa medida os bancos emprestarão menos dinheiro, logo haverá uma queda na circulação.

A estimativa do advogado é alarmante: "As empresas, se elas começarem hoje a se preparar para esse novo mundo, elas vão levar entre 6 e 12 meses para se adaptar financeiramente quando a mudança chegar. Isso, aquelas que não quebraram."

2,4 milhões de regras fiscais: a complexidade exponencial

Luis Wulff apresentou um dos dados mais impactantes do debate: "Se são 16 regimes diferentes em 27 estados com 5.563 municípios, nós teremos 2.405.808 regras fiscais para serem avaliadas no momento do ato financeiro do split."

A pergunta que fica: "Como é que nós teremos o controle do split payment numa venda que eu estou realizando para o município do interior da Bahia ou do Mato Grosso, na capital de São Paulo ou no interior do Rio Grande do Sul?"

A resposta está na criação de tesourarias fiscais. Wulff revelou que, em pesquisa com 10 grandes clientes do agronegócio, "sete deles já estão preparando seus budgets para comportar uma tesouraria fiscal."

O custo será significativo: "As tesourarias fiscais que serão criadas em função do split, o custo para poder estruturar uma tesouraria fiscal e principalmente a inteligência fiscal que essa tesouraria vai ter que proporcionar será grandiosa. Isso simboliza a área tributária colocando as mãos no meio dos negócios."

O fantasma do mercado informal

Uma das preocupações mais contundentes veio de Luis Wulff sobre o risco de retrocesso à informalidade. "Quem garante que no modelo do split payment muito dinheiro físico não volte a circular? Porque a diferença não é 10%, senhoras e senhores, a diferença é 30%. Você quer pagar R$ 100 em dinheiro ou pagar R$ 130 no seu cartão de crédito?"

O CEO citou exemplos práticos: "Em viagens de turismo, vocês vão ver muitos locais com restaurantes cobrando um preço na tabela e um outro preço em dinheiro. Quem nunca viu isso na rua?"

Sua conclusão é severa: "Se essa lógica não der certo, nós temos dois problemas que podem acontecer. Ou a reforma não dá certo e a gente enterra a reforma, ou nós teremos a reforma da reforma criando mecanismos de concentração tributária nas indústrias."

Concentração de mercado: sobrevivência dos mais capitalizados

É consenso entre os especialistas: haverá concentração de mercado. "As empresas com maior capital, maior capital de giro, maior caixa, vão sair na frente. As pessoas vão comprar de quem tem caixa", afirmou Ricardo Anderle.

Luis Wulff concordou: "Sim, nós vamos ter uma concentração. Quantos contribuintes no Brasil vão poder ter duas tesourarias, uma focada no contas a pagar e receber e outra focada só nos impostos?"

O caos do contencioso tributário

Maria Rita Ferragut, sócia de Contencioso Tributário do Trench Rossi Watanabe, que participou do painel "Panorama das Principais Mudanças no Sistema Tributário" apresentou um cenário alarmante para a Justiça:

Para ela, o problema é constitucional: "A competência processual é absoluta. Nosso sistema está armado em forma federativa. Eu não posso obrigar um estado e um município a litigar na Justiça Federal, porque há dispositivo constitucional dizendo que é assegurado a eles a Justiça Estadual e vice-versa."

A solução: Fórum Nacional de Reforma Tributária

A proposta do CNJ, por meio da Portaria 96/2025, prevê a criação de um Fórum Nacional com características específicas:

  • Justiça 4.0, exclusivamente virtual;
  • Varas paritárias (juízes federais e estaduais julgando juntos);
  • Recursos que já perderam na esfera administrativa vão direto para tribunal.

Maria Rita fez uma ressalva importante: "Processos exclusivamente virtuais tendem a não propiciar à advocacia uma ampla defesa. Sustentação oral gravada, ninguém assiste. Se for uma justiça exclusivamente virtual, pelo menos que seja assegurado o despacho prévio à sustentação oral."

Como a reforma afeta a advocacia

Os escritórios de advocacia enfrentarão mudanças radicais. Durante o painel "O Impacto da Reforma Tributária nos Escritórios de Advocacia" Bianca Rothschild, do Martinelli Advogados, explicou a transformação:

Simples Nacional perde atratividade

Com 80% dos escritórios no Simples Nacional, a categoria será fortemente impactada. As alíquotas efetivas ficarão entre 6% e 10%, mas Bianca alertou: "O Simples não tem direito ao creditamento. Quem está adquirindo os seus serviços também só vai se creditar até o limite do que você pagou dentro daquela tabela do Simples. Então também fica muito restrito o crédito de quem está adquirindo."

Ralph Melles Sticca, do PSAA, foi mais direto:

Preparação: a hora é agora

Todos os especialistas que discorreram sobre o tema durante a Fenalaw 2025 foram unânimes: a preparação deve começar imediatamente.

Luis Wulff alerta aos chefes das empresas: "Empresários, executivos, deveriam já estar de olho, entendendo o seu fluxo de caixa, entendendo o custo financeiro de split payment, entendendo se o modelo de negócio é estável ou não no modelo pós-reforma."

Marcela Berger, sócia da Berger Advogados, foi enfática ao alertar os escritórios:

A realidade por trás da promessa de simplificação

Ralph Melles Sticca foi o mais crítico quanto à promessa de simplificação, que seria um advento da reforma, ele criticou os 8 anos de regime híbrido e a implementação de dois departamentos de controladoria em vez de apenas um.

E provocou: "Dizem que são 5 impostos por 2, mas na verdade são 5 por 4 e quase 5, porque o IPI se manteve. Os advogados vão pagar ICMS, pagar IPI. A verdade é essa."

Desconfiança institucional

Um tema recorrente foi a desconfiança na capacidade do governo de cumprir o prometido. A moderadora dos painéis sobre Reforma Tributária, Susy Gomes Hoffmann foi direta: "Eu tenho quase 40 anos de formada e sempre na advocacia empresarial, eu nunca vi o governo devolver rapidamente dinheiro."

Luis Wulff concordou: "Ninguém nunca viu o fisco devolver em um dia, dois ou três. Isso é uma falácia. Você muda suas regras, mas não muda os atores."

O veredicto final

Paulo Duarte talvez tenha dado a melhor síntese do momento: "Eu acredito sim que a gente vai ter um melhor sistema do que a gente tem hoje, porque no Brasil o fundo do poço tem porão. A gente está no porão do fundo do poço, mas até lá, gente, é caos. Caos."

Marcela Berger tratou o tema com certo pragmatismo: "Há dois anos pedi: 'Me convence que isso é bom, por favor.' Não conseguiram. Mas dois anos se passaram, e estamos aqui. Já passamos dessa fase de lamentar. Vamos nos preparar porque é algo que está vindo", concluiu.

Para os especialistas é fundamental que empresas e escritórios coloquem em prática, o mais rápido possível, os seguintes pontos para se adequar à reforma:

Para os especialistas é fundamental que empresas e escritórios coloquem em prática, o mais rápido possível, os seguintes pontos para se adequar à reforma:

  • Parametrizar sistemas até janeiro de 2026 (sem isso, não emitirá notas fiscais);
  • Fazer mapeamento completo de processos (todas as áreas serão impactadas);
  • Revisar todos os contratos com fornecedores e clientes;
  • Simular impactos financeiros (mesmo sem alíquota final definida);
  • Preparar reforço de caixa para os primeiros 6 meses de 2027;
  • Avaliar mudança de regime tributário até setembro de 2026;
  • Considerar criação de tesouraria fiscal;
  • Estudar viabilidade do modelo de negócio sem regimes especiais;
  • Tornar a reforma tema de board, não apenas do jurídico/contábil;
  • Buscar conhecimento multidisciplinar (economia, logística, TI).

O Brasil está prestes a realizar o maior experimento tributário da sua história. E, como alertou Luis Wulff: "Esses desafios são de fato os mais importantes para empresários olharem hoje, não amanhã. Amanhã pode não dar tempo."

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