O cenário corporativo brasileiro enfrenta uma crise de saúde mental que se reflete diretamente no ambiente de trabalho, com impactos significativos na produtividade e nos custos das empresas. Dados recentes do Ministério da Previdência Social revelam um aumento de 68% nos afastamentos por transtornos mentais no último ano. No setor de advocacia, a situação é ainda mais crítica: cerca de 30% de todos os afastamentos médicos entre advogados já são por causas psíquicas, conforme a Ordem dos Advogados do Brasil. Essa realidade não traz apenas um desafio ético, mas um imperativo econômico e, a partir de maio de 2026, uma exigência legal, graças a nova Norma Regulamentadora n.º 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho, que torna obrigatório o gerenciamento de riscos psicossociais.
Diante desse panorama, a mera oferta de palestras pontuais ou campanhas isoladas, como o Setembro Amarelo, revela-se insuficiente para enfrentar a complexidade do problema. É preciso ir além do paliativo e construir uma cultura organizacional que integre a saúde mental de forma sistêmica, reconhecendo-a como um fator crítico de produtividade, retenção de talentos e conformidade regulatória. A verdadeira mudança reside na implementação de estratégias contínuas e abrangentes que promovam um ambiente de trabalho saudável e resiliente, capaz de mitigar os riscos psicossociais e fomentar o florescimento individual e coletivo.
A insuficiência das ações pontuais
Apesar da boa intenção, campanhas sazonais e iniciativas isoladas não são suficientes para lidar com a complexidade da saúde mental no ambiente corporativo. O problema exige consistência e estratégias de longo prazo, já que os riscos psicossociais se manifestam diariamente e não podem ser reduzidos a um mês de visibilidade.
A psicóloga Giovanna Servilha é categórica ao afirmar que ações isoladas não bastam:
Daniely Mendes, gerente de RH do Rolim Goulart Cardoso, complementa essa visão, enfatizando a necessidade de ir além da teoria:
A vulnerabilidade do setor jurídico
Entre todos os setores, a advocacia se mostra particularmente suscetível ao adoecimento psicológico. A natureza do trabalho jurídico cria um ambiente propício à exaustão emocional e ao desenvolvimento de transtornos mentais.
Giovanna Servilha detalha os fatores que contribuem para essa vulnerabilidade: "Pressão e cobranças excessivas, prazos apertados para grandes resultados, expedientes longos e exaustivos, ambiente competitivo e individualista, sobrecarga de atividades e altas responsabilidades são algumas das características do mercado jurídico que auxiliam na suscetibilidade à doenças mentais." Essa realidade exige das empresas do setor uma atenção redobrada e estratégias personalizadas para mitigar os riscos psicossociais, que vão muito além de um mês de conscientização.
Diante desse cenário, a implementação de medidas estruturais torna-se indispensável. Mais do que ações de conscientização, os escritórios precisam adotar políticas de apoio contínuo, promover equilíbrio entre demandas profissionais e pessoais e capacitar lideranças para identificar sinais de sobrecarga. Somente com uma abordagem sistêmica será possível reduzir a vulnerabilidade do setor e garantir que a prática jurídica seja exercida de forma sustentável e saudável.
Saúde mental como investimento
Cuidar da saúde psicológica dos colaboradores não é apenas uma questão de responsabilidade social: trata-se também de uma decisão estratégica que impacta diretamente os resultados financeiros das empresas. O investimento gera ganhos em produtividade, engajamento e retenção, consolidando-se como um diferencial competitivo.
Organizações que priorizam o bem-estar psicológico de seus funcionários podem reduzir o turnover em até 30% e aumentar a produtividade em 23%, segundo dados da Organização Mundial da Saúde e da consultoria Deloitte. Giovanna Servilha reforça a conexão entre bem-estar e engajamento: "Se as empresas buscam pessoas engajadas para suas equipes, é preciso se preocupar com a promoção e manutenção da saúde mental em suas organizações." Daniely Mendes corrobora, destacando a relação com a retenção de talentos:
Estratégias que funcionam
Mais do que falar sobre saúde mental, algumas organizações já implementam práticas consistentes e diversificadas para apoiar seus colaboradores. Essas iniciativas vão desde o suporte clínico até programas de bem-estar e ações de integração, demonstrando que resultados concretos dependem de abordagens estruturadas e contínuas.
Rafaela Baraçal, especialista em gestão de saúde do Machado Meyer Advogados, compartilha as iniciativas do escritório. "Temos diversas ações, como: atendimento de psicoterapia e consultas com psiquiatras de forma gratuita para todos os colaboradores, treinamento de saúde mental para as lideranças, treinamento para os nossos estudantes sobre equilíbrio de vida pessoal e profissional e programa de qualidade de vida com diversas ações nos pilares de saúde física, social e emocional. Além disso, contamos com o Programa de Acolhimento, que é um canal dentro do RH para apoiar nossas pessoas e liderança na condução de casos de saúde mental de maneira técnica e confidencial."
No Rolim Goulart Cardoso, Daniely Mendes destaca a presença de "uma psicóloga na equipe de RH para atendimentos e orientações, além do Programa Aproxima, de escuta ativa, que promove acompanhamento individual dos profissionais em todas as unidades." Além disso, o escritório investe em "palestras, rodas de conversa, campanhas de conscientização e conteúdos educativos", mantendo um regime híbrido de trabalho e promovendo confraternizações para fortalecer vínculos e oferecer momentos de descompressão.
Liderança e a cultura organizacional
Nenhuma política de saúde mental se sustenta sem o engajamento da liderança. São os gestores que dão o exemplo, criam vínculos de confiança e consolidam uma cultura que coloca o bem-estar no centro da estratégia. Quando líderes se mostram abertos e preparados, a mudança cultural torna-se efetiva.
Daniely Mendes explica que o Rolim Goulart Cardoso "acompanha de perto as lideranças para que estejam atentas ao bem-estar das equipes" e promove "treinamentos, palestras com especialistas externos e acompanhamento próximo em conjunto com o RH e a psicóloga da equipe".
Rafaela Baraçal, do Machado Meyer, enfatiza que a principal adaptação cultural necessária é "tratar o tema de forma mais aberta e inseri-lo à cultura organizacional como parte importante do dia a dia das pessoas." Uma cultura que valoriza o bem-estar mental promove flexibilidade, equilíbrio entre vida pessoal e profissional, e comunicação aberta, criando um ambiente de confiança onde os funcionários se sentem à vontade para buscar ajuda.
Prevenção, intervenção e análise de dados
Para que os programas de saúde mental sejam eficazes, é indispensável atuar antes que os problemas se agravem. A prevenção e a identificação precoce de riscos, aliadas ao uso de dados para orientar decisões, permitem construir estratégias mais precisas e eficientes. Sinais como falta de motivação, apatia, irritabilidade, isolamento social, distúrbios do sono, queda na produtividade, dores físicas constantes e esgotamento são indicadores de adoecimento mental frequentemente confundidos com mera queda de desempenho do funcionário.
Por isso, a equipe precisa estar atenta aos sinais e ter como auxiliar o colaborador sem que ele precise pedir por ajuda. O Rolim Goulart Cardoso Advogados, por exemplo, conta com a psicóloga interna para "orientar os próximos passos, seja buscando um psicólogo externo ou até mesmo um psiquiatra", oferecendo um "primeiro suporte e direcionamento qualificado", explica Daniely Mendes, gerente de RH. Rafaela Baraçal, do Machado Meyer, menciona o uso de "indicadores como exames ocupacionais, avaliações de desempenho, pesquisa de cultura, eNPS, lNPS e entrevistas de desligamento" para guiar ações assertivas. A coleta e análise de dados são cruciais para programas eficazes, permitindo que as empresas desenvolvam ações mais direcionadas e personalizadas.
Do bem-estar à sustentabilidade organizacional
A promoção da saúde mental nas empresas exige muito mais do que ações pontuais: demanda políticas consistentes, liderança engajada e uma cultura que valorize o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. No setor jurídico, marcado por alta pressão e competitividade, essa abordagem se torna ainda mais urgente e estratégica.
A saúde mental no ambiente corporativo transcende a esfera do bem-estar individual para se consolidar como um pilar de gestão. Ir além das palestras e investir em programas robustos, lideranças capacitadas e uma cultura de apoio não é apenas uma questão de conformidade legal, mas o caminho para construir equipes mais resilientes, produtivas e engajadas — garantindo um futuro mais saudável e próspero para todos.
Mais do que atender a normas ou acompanhar tendências, cuidar da saúde mental significa assumir um compromisso ético e estratégico com o futuro das organizações. Empresas que reconhecem o valor do bem-estar de seus profissionais constroem não apenas ambientes mais humanos, mas também negócios mais inovadores, sustentáveis e preparados para enfrentar os desafios de um mundo em constante transformação.