Professor da Universidade de Lisboa avalia a reforma do Código Civil | Análise
Análise

Professor da Universidade de Lisboa avalia a reforma do Código Civil

O professor Diogo Costa Gonçalves, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, veio ao Brasil para compartilhar uma análise crítica da reforma

18 de November 17h13
Professor Diogo Costa Gonçalves ministrando aula sobre a reforma do Código Civil na Faculdade Belavista (Imagem: Faculdade Belavista/Reprodução).

O Projeto de Lei 4/2025, que tramita no Senado Federal e propõe uma ampla reforma do Código Civil brasileiro, tem sido objeto de intenso escrutínio por parte da comunidade jurídica nacional e internacional. Em entrevista exclusiva à Análise Editorial, o professor Diogo Costa Gonçalves, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, trouxe uma perspectiva crítica e comparada sobre o processo de reforma, questionando não apenas o conteúdo das mudanças propostas, mas também a metodologia e o timing da iniciativa legislativa.

Durante sua passagem pelo Brasil, onde ministrou aula sobre o tema na Faculdade Belavista, o acadêmico português apresentou uma análise metodológica rigorosa sobre as alterações propostas, questionando a coerência dogmática de algumas inovações legislativas. A discussão ganha relevância especial considerando que o Brasil e Portugal compartilham a mesma tradição romano-germânica de Direito civil, o que permite análises comparativas fundamentadas na história comum dos institutos jurídicos.

Estabilidade legislativa como valor fundamental

Em entrevista à Análise, o professor Gonçalves foi categórico ao afirmar que a permanência e estabilidade dos códigos civis representam valores essenciais para o funcionamento adequado do sistema jurídico. Para o acadêmico português, essa estabilidade não é um capricho conservador, mas uma necessidade prática para os operadores do Direito e para agentes econômicos.

"A estabilidade dos códigos civis, a sua permanência, é um valor, um fator de segurança para o comércio jurídico, é um fator de estabilidade social e de previsibilidade. É necessário para que a doutrina e a jurisprudência possam trabalhar com segurança, com estabilidade, burilando as regras jurídicas e dando consistência aos processos judiciais", afirmou Gonçalves. Segundo ele, códigos civis em constante mudança impedem que a jurisprudência consolide interpretações e que a doutrina desenvolva soluções consistentes para os casos concretos.

Critérios rigorosos para reformas legislativas

Quando questionado sobre quais áreas do Código Civil brasileiro precisariam ser revistas, o professor surpreendeu ao não apresentar uma lista de temas, mas sim critérios metodológicos para avaliar a necessidade de qualquer reforma. Essa abordagem reflete uma visão segundo a qual o problema não está necessariamente no conteúdo atual do código, mas na metodologia que está sendo empregada para sua revisão.

"Qualquer alteração de um código civil — no Brasil, em Portugal ou em qualquer parte do mundo — deve ser motivada por uma necessidade social muito concreta e muito urgente, e deve refletir um grande consenso na comunidade jurídica, sobretudo na jurisprudência e na doutrina", enfatizou o acadêmico. Para Gonçalves, reformas legislativas em Direito civil não podem ser tratadas como ajustes ordinários, mas exigem justificativas robustas e amplo acordo entre os especialistas.

A experiência portuguesa como referência

O professor apresentou como exemplo positivo a reforma das incapacidades realizada no Código Civil português, que respondeu a uma necessidade social concreta: a longevidade crescente da população. Esse caso ilustra o tipo de reforma que Gonçalves considera legítima e bem fundamentada.

"Alterou-se o regime das incapacidades do Código Civil português em função de uma necessidade concreta que não existia ao tempo da sua elaboração, que é a grande longevidade dos cidadãos. Isso coloca o problema de como acompanhar, nas suas incapacidades de direito e de exercício, cidadãos que hoje vivem com uma expectativa de vida muito ampla — para mais de 80, 90 anos", explicou o professor, ressaltando que se tratava de "um problema novo" que o regime anterior não estava preparado para enfrentar.

Diagnóstico crítico sobre a reforma brasileira

Em contraste com o exemplo português, o professor manifestou ceticismo quanto à justificativa e ao método da reforma brasileira em curso. Sua avaliação sugere que o projeto não atende aos critérios que ele próprio estabeleceu como necessários para reformas legítimas de códigos civis.

"No caso da reforma brasileira, tanto quanto percebo, ela não está respondendo nem a um consenso doutrinário, nem a um consenso de jurisprudência, nem a uma real necessidade de reforma", afirmou Gonçalves.

Para o acadêmico, a ausência desses três elementos — consenso doutrinário, consenso jurisprudencial e necessidade social concreta — torna problemática qualquer iniciativa de reforma ampla do código.

Digitalização: cautela na codificação

Sobre um dos temas centrais do projeto de reforma — a adequação do Código Civil aos desafios da economia digital —, o professor adotou posição cautelosa, recomendando que matérias tecnológicas não sejam precipitadamente incorporadas ao código. Sua posição tem implicações importantes para empresas de tecnologia e para operações digitais em geral.

Gonçalves observou que os desafios do mundo digital exigem resposta prioritária em nível de regulamentação internacional, mas advertiu: "É uma matéria tão volátil, que sofre tanta adaptação no decorrer do tempo, que me parece muito pouco adequada a sua codificação". A preocupação do professor é que a incorporação prematura de regras sobre tecnologia ao Código Civil resulte em sucessivas reformas, comprometendo justamente a estabilidade que considera essencial.

Maturação legislativa fora do código

O professor propôs uma abordagem alternativa para temas tecnológicos: permitir que amadureçam em legislação autônoma antes de eventual incorporação ao Código Civil. Essa estratégia protegeria a estabilidade do código enquanto permite experimentação e ajustes em áreas de rápida evolução.

"Estas matérias que estão muito sujeitas aos ventos do tempo, a alterações que necessariamente vão ocorrer e a correções, mais vale que estejam fora do Código Civil. É melhor que maturem durante algum tempo em legislação autônoma e posteriormente entrem para o Código Civil", explicou Gonçalves, alertando contra o risco de "condenar o Código Civil a sucessivas alterações numa matéria que, pela natureza tecnológica, vai sofrer muita modificação ao longo do tempo".

Participação da comunidade jurídica

O professor defendeu que reformas de códigos civis devem envolver ampla consulta aos operadores do Direito, indo além dos elaboradores do projeto. Para ele, a legitimidade de uma reforma depende da participação efetiva de quem aplica o Direito diariamente.

"A comunidade jurídica tem um papel fundamental na discussão pública dos programas, na audição daqueles que são os atores jurídicos, daqueles que operacionalizam o Direito todos os dias: juízes, promotores de justiça, advogados e todos os outros servidores públicos", afirmou Gonçalves, enfatizando que essa participação não pode ser meramente formal, mas deve efetivamente influenciar o conteúdo final das propostas.

O papel das faculdades de Direito

Gonçalves destacou especialmente a importância de ouvir as faculdades de Direito mais representativas, tanto pela perspectiva acadêmica quanto pelo papel de formação dos futuros operadores do Direito. Segundo ele, a academia tem contribuição essencial a dar em processos de reforma.

"Uma audição que acho indispensável e importantíssima é a das faculdades de Direito, as mais representativas do ensino brasileiro. Acho importante também ouvir o Direito comparado e, por isso, ouvir especialistas de outros sistemas jurídicos que têm afinidade com o sistema jurídico brasileiro", defendeu o professor, sugerindo que a reforma deveria incorporar perspectivas internacionais de forma mais sistemática.

Análise de impacto econômico

Uma das recomendações mais relevantes para o setor empresarial foi a defesa de estudos empíricos sobre custos e efeitos econômicos das mudanças propostas. Gonçalves argumentou que legisladores precisam compreender concretamente as implicações econômicas de suas decisões.

"É conveniente que uma modificação legislativa seja sempre acompanhada de um estudo empírico sobre o custo e os efeitos econômicos que uma modificação legislativa pode ter. É preciso que os legisladores e toda a comunidade saibam quanto custa, que impacto tem no comércio, no investimento, na captação e conservação do investimento, as alterações que podem estar a ser postas em causa", afirmou o acadêmico, ressaltando que essa análise deveria abranger tanto a regulamentação atual quanto as propostas de alteração.

Recomendação central: prudência

Ao ser solicitado a deixar uma única recomendação concreta para os juristas brasileiros envolvidos na reforma, o professor foi direto e sintético, mas suas palavras carregam peso institucional e advertência clara sobre os riscos do processo em curso.

"Eu recomendaria prudência na reforma, o que é contrário a qualquer precipitação. Recomendaria também que atendessem ao sentir da comunidade jurídica que esteve envolvida no projeto, mas também daquela que foi ouvida e que não esteve envolvida no projeto", afirmou Gonçalves, antes de complementar com a orientação que considera fundamental:

"Não tomem opções legislativas que não traduzam um consenso muito generalizado na doutrina e na jurisprudência".

Implicações para o ambiente de negócios

As advertências do professor português têm repercussões diretas para o planejamento jurídico de empresas no Brasil. A instabilidade legislativa em matéria de Direito civil afeta contratos de longo prazo, operações de fusão e aquisição, financiamentos estruturados e toda sorte de negócios que dependem de previsibilidade jurídica.

A proposta de introduzir a função social como requisito de validade contratual, tema que Gonçalves analisou detalhadamente em sua aula, exemplifica o tipo de mudança que pode gerar insegurança sem benefício claro. Para executivos jurídicos de grandes empresas, a perspectiva de que contratos possam ser declarados nulos com base em conceito juridicamente impreciso representa risco significativo.

Além disso, o acadêmico português deixa claro que reformas apressadas, sem consenso amplo e sem demonstração clara de necessidade social, podem comprometer valores essenciais como segurança jurídica e previsibilidade. Para quem orienta decisões estratégicas em grandes organizações, essas advertências merecem atenção especial, pois apontam para um possível cenário de maior incerteza e judicialização caso o projeto seja aprovado sem os ajustes e amadurecimento necessários.

Diogo Costa GonçalvesFaculdade BelavistaReforma do Código CivilUniversidade de Lisboa