IA e direitos autorais: o que o caso Studio Ghibli tem a ensinar | Análise
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IA e direitos autorais: o que o caso Studio Ghibli tem a ensinar

Advogados discutem até onde é definido o limite do uso de inteligência artificial, sem esbarrar nas leis de direito autoral

4 de April 14h

Os direitos autorais de conteúdos gerados por Inteligência Artificial têm sido alvo de debates desde o surgimento do tema, intensificando-se com a disponibilização da tecnologia ao grande público em 2022. Recentemente, a OpenAI lançou a geração de imagens no estilo do Studio Ghibli, renomado estúdio de animação conhecido por obras como A Viagem de Chihiro e Meu Amigo Totoro. A empresa, responsável pelo ChatGPT, uma das inteligências artificiais mais relevantes do mundo, tomou essa iniciativa.

O que é a febre do Studio Ghibli?

A tendência começou a se espalhar pelas redes sociais em 25 de março, quando a OpenAI liberou para usuários pagos e gratuitos do ChatGPT a possibilidade de gerar imagens no estilo das animações do Studio Ghibli. Segundo a própria OpenAI, apenas uma hora após a liberação do serviço, a empresa conquistou um milhão de novos usuários. Devido à alta demanda, foi necessário impor restrições à geração de imagens para usuários da versão gratuita.

Em um documentário lançado em 2016, Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli, já havia manifestado sua oposição ao uso dessa tecnologia em seu trabalho. "Estou completamente enojado. Se você realmente quer fazer coisas assustadoras, pode ir em frente e fazer. Eu nunca desejaria incorporar essa tecnologia ao meu trabalho. Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida."

Taya Christianson, porta-voz da OpenAI, declarou por e-mail à imprensa que o objetivo da empresa é oferecer aos usuários o máximo de liberdade criativa possível, mas rebateu as críticas. "Continuamos a impedir a geração no estilo de artistas vivos individuais, mas permitimos estilos de estúdios mais amplos."

A trend reacendeu o debate sobre os direitos autorais de artistas e empresas de animação, além de questionar os limites da Inteligência Artificial no uso de criações artísticas sem o consentimento dos autores.

O que o Studio Ghibli pode fazer?

Rafael Dias de Lima, sócio do Dannemann Siemsen Advogados e eleito Mais Admirado no anuário ANÁLISE ADVOCACIA, explica que, se alguém utilizar as imagens como base, deve obter autorização e considerar a importância do aspecto territorial.

"Se o uso ocorreu nos EUA e o Studio Ghibli conseguir comprovar que seus filmes foram utilizados para o desenvolvimento que resultou na geração dessas imagens, a questão precisará ser avaliada perante a lei americana para que seja judicializada por lá", explica Rafael.

No entanto, o sócio do Danneman destaca que existem diferenças entre os tipos de uso, que podem se enquadrar neste caso. "Uma coisa é utilizar a obra pura e simples. Outra é usá-la como base para o treinamento e desenvolvimento da IA, e então permitir a criação de novas imagens. Esse é um ponto que pode ser discutido, caso tenha ocorrido ou não."

Direitos autorais vs. IA

A Lei 9.610, aprovada em 19 de novembro de 1998, estabelece que a violação de direitos autorais ocorre apenas quando há interação humana. Rafael explica que o debate gira em torno desse ponto, questionando até onde vai a proteção concedida pela interação humana. "Se há interação entre o usuário e a IA no desenvolvimento da obra, esse resultado é protegido ou não? Essa é uma questão que a legislação ainda não esclarece. Provavelmente, será necessário um julgamento para definir se uma obra feita por IA, mas com significativa participação humana, merece proteção. No momento, há apenas um amplo debate sobre o tema."

Marina Draib, sócia do Vinhas e Redenschi Sociedade de Advogados e eleita Mais Admirada no ANÁLISE ADVOCACIA MULHER 2025, reforça que obras geradas por IA não surgem de forma totalmente autônoma, mas a partir de comandos humanos. "O usuário pode definir parâmetros, estilos, referências e até modificar o resultado final, o que levanta o argumento de que há, sim, participação criativa humana no processo. A grande questão é determinar se essa contribuição é suficiente para garantir proteção autoral."

Os direitos autorais e a IA no Brasil

No Brasil, o Projeto de Lei 2.338/2023 propõe a regulamentação da Inteligência Artificial. O texto exige que as empresas de tecnologia divulguem quais conteúdos protegidos por direitos autorais usaram no treinamento de IA. Além disso, permite que autores vetem o uso de suas obras, garantindo maior controle sobre seus direitos. Também prevê a criação de um ambiente experimental para que empresas negociem diretamente com os autores a remuneração pelo uso de suas criações.

Marina destaca, no entanto, que esse projeto de lei não trata da titularidade dos direitos autorais, assim como a regulamentação europeia. "Diante disso, é provável que esse tema seja alvo de intensos debates jurídicos e legislativos nos próximos anos, à medida que a tecnologia avança e a necessidade de segurança jurídica se torna mais evidente."

Sobre a proteção dos direitos autorais, Marina explica: "O PL 2338/23 prevê que desenvolvedores que utilizem obras protegidas para fins comerciais devem obter autorização ou remunerar os titulares dos direitos autorais. Caso contrário, os autores poderão proibir o uso de suas criações. Já para usos sem fins lucrativos, há restrições, como: (i) não pode haver finalidade comercial; (ii) o uso não pode ter como principal objetivo a reprodução ou disseminação da obra original; e (iii) o conteúdo só pode ser utilizado na medida necessária para o objetivo pretendido. Se essas condições não forem cumpridas, o titular pode impedir o uso da obra."

Como os autores podem se proteger do uso inapropriado da IA?

A legislação brasileira estabelece que os direitos autorais não dependem do registro da obra. No entanto, Rafael recomenda que os autores façam o registro de suas criações, pois ele pode servir como prova em caso de disputa judicial.

"Se surgir alguma questão envolvendo IA e o autor entender que houve violação, certamente ele pode utilizar esse registro, reunir provas e anexá-las a um processo judicial. Isso permitirá que o juiz analise se houve, de fato, violação de direitos autorais", diz Rafael.

Marina fala que existem ferramentas que ajudam na proteção de direitos autorais. O EU AI Act, primeira regulação global sobre IA, permite que artistas protejam suas obras contra o uso não autorizado por meio do Opt-Out, um mecanismo que obriga desenvolvedoras de IA generativa a respeitar a exclusão de conteúdos protegidos de suas bases de treinamento.

"Todavia, a real implementação do Opt-Out e a garantia de que obras protegidas não sejam usadas sem permissão ainda são incertas. Isso torna o tema como um dos principais focos de debates jurídicos e regulatórios nos próximos anos", afirma Marina.

Ela também menciona que plataformas online já usam tecnologias de rastreamento, como marcações digitais e metadados, para identificar violações, mas ainda enfrentam desafios de usabilidade. "O controle sobre essas violações certamente ainda é um desafio, considerando o enorme volume de dados usados para treinar modelos de IA."

Em suma, Rafael enfatiza que, apesar da importância desse debate, ele não será o último. "A questão envolvendo o Studio Ghibli é apenas mais um exemplo entre muitos. A IA está disponível para todos, e qualquer pessoa pode utilizá-la. A aplicabilidade de infrações sob a ótica do direito autoral inegavelmente dependerá da legislação de cada país. Algumas serão mais permissivas do que outras, e isso também envolve uma estratégia de uso."

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