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Entenda a guerra das IAs no meio jurídico

Escritórios investem milhões em soluções proprietárias enquanto mercado vive explosão de ferramentas. Especialistas divergem: revolução democrática ou corrida excludente?

19 de November 12h21
(Imagem: Análise Editorial/Shutterstock)

O mercado jurídico brasileiro atravessa uma transformação sem precedentes. Nos últimos dois anos, a inteligência artificial deixou de ser uma expectativa distante. Já se tornou realidade nos escritórios de advocacia e departamentos jurídicos do país. Mas, longe de um cenário pacífico, observa-se uma verdadeira disputa por posicionamento tecnológico. Há investimentos milionários e desenvolvimento de plataformas proprietárias. Uma enxurrada de novas ferramentas disputa espaço no mercado.

"Não estamos vendo nem a corrida do ouro e nem uma bolha das IAs jurídicas. Estamos vivendo na época de ouro da advocacia e da cidadania", afirma Daniel Marques, diretor executivo da AB2L, associação que reúne mais de mil lawtechs, departamentos jurídicos e escritórios de advocacia. Para ele, o momento representa a democratização do acesso à tecnologia jurídica, permitindo que pequenos escritórios compitam em igualdade com grandes bancas.

A visão otimista, no entanto, convive com uma realidade mais complexa. Aline Valente Shamilian, co-CEO da Future Law, reconhece traços de bolha quando se fala de inovação de forma ampla, mas pondera que a IA está justamente ajudando a romper essa bolha. "Ferramentas não jurídicas de mercado e muitas vezes gratuitas despertaram o interesse das pessoas advogadas, que passaram a testar e adotar essas tecnologias no dia a dia", explica.

O dilema: desenvolver ou comprar?

Um dos principais debates do setor gira em torno da escolha entre desenvolver soluções proprietárias ou adotar ferramentas de mercado. Grandes escritórios têm optado por caminhos distintos, mas convergem para modelos híbridos que mesclam tecnologia de ponta com personalização.

O BKM Advogados ficou em 1º lugar na categoria "IA nos escritórios" do Prêmio Análise DNA+Fenalaw 2025. O escritório desenvolveu o LIMATRIX, um ecossistema de assistentes de IA personalizados. Esses assistentes foram treinados com a base de conhecimento interna do escritório. "O investimento principal não esteve voltado para desenvolver um modelo do zero", explica Felipe Lima. Lima é sócio e head de Inovação do BKM. O foco foi fortalecer a internalização, personalização e governança da IA dentro do escritório.

O Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA), 2º colocado na categoria do Prêmio Análise DNA+Fenalaw 2025 seguiu caminho semelhante, construindo uma arquitetura própria sobre soluções de mercado. "Trabalhamos com modelos de base de provedores consolidados, mas toda a camada de produto, fluxo de trabalho, segurança, governança e experiência do usuário é desenvolvida internamente", detalha Solano de Camargo, sócio do escritório. A estrutura conta com mais de 20 cientistas e engenheiros de dados trabalhando ao lado dos advogados.

Já o TozziniFreire, que conquistou o 3º lugar da categoria "IA nos escritórios" do Prêmio Análise DNA+Fenalaw 2025, apostou em uma estratégia híbrida desde 2018, com o lançamento do ThinkFuture, primeiro programa de inovação estruturado por um escritório full-service na América Latina. "Desenvolvemos modelos próprios e, ao mesmo tempo, integramos soluções open source, sempre treinadas com dados internos para garantir precisão, segurança e aderência à nossa realidade jurídica", conta Patrícia Martins, sócia responsável pelo programa.

Ganhos mensuráveis além do marketing

Os escritórios que investiram pesadamente em IA apresentam números expressivos. No TozziniFreire, a análise de processos passou de um dia útil para o mesmo dia da chegada, a elaboração de resumos caiu de 30 para 11 minutos e a produção de peças jurídicas foi reduzida de 46 para apenas 6 minutos. O resultado: ganho de produtividade de uma hora e 16 minutos por dia para cada advogado.

No BKM, a produtividade na área cível mais que dobrou com a mesma equipe, mantendo e até elevando o padrão de qualidade técnica. "Nosso verdadeiro ganho competitivo não está na velocidade, mas na sofisticação", destaca Caio Kuster, sócio diretor do escritório.

O impacto também aparece na relação com clientes. Felipe Lima relata que o NPS (Net Promoter Score) do BKM teve salto relevante após a implementação da IA.

O desafio cultural supera a tecnologia

Curiosamente, todos os entrevistados são unânimes em um ponto: o maior obstáculo não foi a tecnologia, mas a mudança cultural. "Tecnologia não é o gargalo. O desafio real é cultural", afirma Caio Kuster. "É fazer o advogado entender que IA não é um Google glorificado nem um robô fazendo petição. É uma inteligência complementar, uma segunda camada de análise."

O BKM realizou 18 oficinas práticas de IA entre 2024 e julho de 2025, sempre com formato "mão na massa", transformando advogados em coautores dos robôs, e não apenas usuários passivos. O LBCA criou a Akdia, uma academia de capacitação permanente, e estruturou uma área de Sandbox para experimentação controlada antes de integrar soluções à rotina produtiva.

"Quando a equipe percebe que a tecnologia os torna melhores, não substituíveis, a resistência vira entusiasmo", resume Kuster. O LBCA conseguiu engajar praticamente todos os seus 800 colaboradores na convergência entre IA e direito, inclusive com concursos internos para que equipes proponham soluções aplicáveis ao escritório e aos clientes.

Dilemas éticos e responsabilidade profissional

A expansão acelerada das ferramentas de IA traz à tona questões éticas complexas. Daniel Marques, da AB2L, é direto:

Para ele, os casos observados de uso inadequado já podem ser enquadrados como negligência na advocacia pelo código atual.

Aline Valente alerta para os riscos da experimentação descontrolada. "Estamos vivendo um momento de intensa experimentação, em que muitas pessoas testam ferramentas gratuitas por conta própria. Isso aumenta significativamente os riscos, especialmente no que diz respeito à exposição de dados sensíveis e ao vazamento de informações sigilosas."

A solução, segundo ela, passa pela educação. "Empresas e escritórios têm um papel essencial: educar. É preciso orientar sobre boas práticas, explicar riscos e estabelecer diretrizes claras de uso responsável." Este ano, o BKM publicou uma Política de IA Ética e Segura, alinhada às recomendações da OAB Nacional e do CNJ, integrada ao sistema de gestão ISO 27001.

Tarefas automatizadas e os limites da tecnologia

A IA já domina tarefas relacionadas à produção de texto, minutas, análises iniciais, revisões, pesquisas e estruturação de argumentos. No TozziniFreire, a triagem automatizada de processos passou a ser realizada no mesmo dia do recebimento, e o escritório desenvolveu um agente de jurisprudência próprio diante da ausência de soluções confiáveis no mercado.

Patrícia Martins revela que o aprendizado veio também dos erros:

O LBCA utiliza IA para classificar demandas, priorizar casos, sugerir minutas alinhadas às teses do escritório e organizar informações dispersas. Em litígios trabalhistas, a tecnologia analisa depoimentos, padroniza acompanhamento de casos semelhantes e sinaliza casos fora do padrão, reduzindo significativamente o tempo de resposta.

Mas a tecnologia tem limites importantes. Felipe Lima relata que testes com modelos genéricos confirmaram o risco de "alucinações" e citações imprecisas, levando o BKM a reforçar a segurança do sistema e manter alguns assistentes em ambientes privados sem acesso à internet. "Toda saída da IA é revisada criticamente por um advogado, reforçando seu papel de copiloto", garante.

Caio Kuster complementa: "A IA frequentemente entrega insights que estavam invisíveis — padrões, tendências, fragilidades, oportunidades. Mas ela também revela suas fronteiras: ela projeta; nós julgamos."

O que realmente importa na escolha de uma ferramenta

Com tantas opções disponíveis, como escolher? Daniel é categórico: "O maior erro que existe na hora de contratar uma ferramenta é buscar a ferramenta por si só. Todo advogado deve buscar a ferramenta a partir de uma dor e uma necessidade."

Aline reforça:

Para ela, soluções que resolvem problemas reais, se conectam a sistemas já utilizados e geram impacto mensurável no trabalho jurídico são as que se destacam. "Antes de escolher uma ferramenta pela hype, é fundamental definir claramente o objetivo do uso", aconselha.

Clientes já cobram uso de IA

O mercado está em transição. Solano de Camargo faz uma observação sobre o comportamento dos clientes diante das mudanças existentes:

Caio Kuster vai além: "No início, IA é um diferencial interno, mas clientes sofisticados já valorizam, perguntam, cobram. E daqui a pouco não será diferenciação: será obrigação."

Adoção ainda desigual

Apesar do avanço, a adoção não é uniforme. Segundo Daniel Marques, no mundo empresarial, enquanto 30 a 35% das empresas estão adotando de maneira estruturada e organizada ferramentas de inteligência artificial, 70% dos colaboradores já estão usando por conta própria. "Existe um desafio que é o desafio das organizações se estruturarem para ter um uso mais eficaz, organizado e estruturado dessas ferramentas."

Valente nota diferenças significativas entre grandes bancas e pequenos escritórios. "Grandes bancas tendem a avançar mais rápido; pequenos escritórios enfrentam mais barreiras, especialmente relacionadas a investimento e governança do uso." Um dos maiores desafios, segundo ela, é definir como liberar o uso dessas ferramentas, considerando que muitos profissionais já utilizam contas pessoais para testar.

O futuro da advocacia

As perspectivas para os próximos anos são de transformação radical. Solano prevê um cenário em que "escritórios serão avaliados pela convergência entre domínio jurídico profundo, fluência tecnológica voltada às dores específicas do cliente e capacidade de formar pessoas."

Caio Kuster resume a visão de muitos: "A IA vai reorganizar o mercado. Vai separar quem opera no piloto automático de quem pensa estrategicamente. O papel do advogado será ressignificado — menos executor, mais arquiteto de soluções; menos repetitivo, mais analítico; menos operacional, mais decisor."

Para Felipe Lima, três movimentos principais marcarão os próximos anos: a migração da IA de diferencial para requisito mínimo, maior foco em governança e ética, e expansão além do contencioso, transformando a IA em camada transversal de inteligência do escritório.

A "guerra das IAs" no meio jurídico, portanto, está apenas começando. E se há consenso entre quem está na vanguarda, é este: a questão já não é se os escritórios vão usar IA, mas quão rápido conseguirão fazê-lo com governança, segurança e alinhamento à sua identidade. Como sugere a Daniel, participar de comunidades engajadas, como a AB2L, e se antecipar às tendências não é mais opcional — é questão de sobrevivência profissional.

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