O futebol é mais do que um jogo. É paixão, é cultura, é identidade. Dos gramados enlameados, das várzeas às arenas modernas que ressoam com o clamor das torcidas, o esporte sempre esteve em constante evolução. No entanto, além dos gols e das conquistas, existe um alicerce jurídico que sustenta toda essa estrutura, regulando contratos, garantindo direitos e impulsionando a profissionalização. O Direito Desportivo tem se moldado às necessidades do esporte, acompanhando seu crescimento e garantindo que a bola continue rolando com transparência e equilíbrio.
Para entender o desenvolvimento do Direito Desportivo, é essencial traçar uma linha do tempo com os períodos de destaque e leis fundamentais de cada fase. O advogado Fabrício Trindade de Sousa detalhou a história do Direito Desportivo em entrevista à Análise Editorial. Ele é sócio do escritório Amorim, Trindade, Kanitz e Russomano Advogados e fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD). De acordo com o especialista podemos analisar da seguinte forma:
Linha do Tempo do Direito Desportivo
1º Período - Intervencionismo Estatal e Organização Inicial (1938-1945)
- 1938 - Decreto-Lei nº 526: Criação do Conselho Nacional de Cultura, incluindo o desporto como parte do desenvolvimento cultural.
- 1939 - Decreto-Lei nº 1.056: Primeiro plano geral de regulamentação do desporto.
- 1941 - Decreto-Lei nº 3.199: Primeira lei orgânica do desporto nacional, criando os Conselhos Nacional e Regionais do Desporto.
- 1941 - Decreto nº 3.617: Organização do desporto universitário.
- 1942 - Decreto-Lei nº 5.342: Disciplina das atividades desportivas e define competência do Conselho Nacional de Desportos.
- 1945 - Decreto-Lei nº 7.674: Estabelece fiscalização financeira das entidades desportivas.
2º Período - Expansão e Consolidação do Desporto (1946-1976)
- 1946 - Decreto-Lei nº 8.458: Registro de entidades e associações desportivas.
- 1956 - Decreto nº 38.788: Criação da Comissão Desportiva das Forças Armadas.
- 1960 - Decreto nº 47.978: Regulamentação do registro de técnicos desportivos.
- 1961 - Decreto nº 51.008: Definição de horários para competições esportivas.
- 1964 - Decreto nº 53.820: Regulamentação da profissão de atleta de futebol e participação no valor do passe.
- 1973 - Lei nº 5.939: Benefícios previdenciários para atletas profissionais.
- 1975 - Lei nº 6.251: União passa a legislar sobre normas gerais do desporto.
- 1976 - Lei nº 6.354: Regulamenta as relações entre jogadores e clubes (revogada em 2011).
3º Período - Constitucionalização do Esporte e Direito Social (1988-1998)
- 1988 - Constituição Federal: O esporte é reconhecido como um direito social e fundamental.
- 1990 - Lei nº 8.028: Justiça Desportiva regulamentada por lei federal.
- 1993 - Lei nº 8.672 (Lei Zico): Faculta a transformação dos clubes em empresas e prevê o fim do passe.
- 1998 - Lei nº 9.615 (Lei Pelé): Obrigatoriedade de clubes se tornarem empresas e regulamentação do direito de arena.
4º Período - Reformas e Profissionalização (2000-2021)
- 2000 - Lei nº 9.981: Criação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva.
- 2003 - Lei nº 10.672: Alterações na Lei Pelé e novas normas de organização do esporte.
- 2011 - Lei nº 12.395: Alteração significativa da Lei Pelé, regulamentando contratos e direitos trabalhistas de atletas.
- 2013 - Lei nº 12.876: Novas regras para contratos de imagem e direito de arena.
- 2015 - Lei nº 13.155 (Profut): Programa de modernização da gestão e responsabilidade fiscal dos clubes.
5º Período - Modernização e SAF (2021-atualidade)
- 2021 - Lei nº 14.193 (SAF): Instituição da Sociedade Anônima do Futebol, permitindo clubes se tornarem empresas.
- 2023 - Lei nº 14.597 (Lei Geral do Esporte): Consolidação de regras sobre governança, direitos dos atletas e financiamento do esporte.
SAF: A Transformação dos Clubes em Empresas e a Atração de Investidores
Quando nos deparamos com o período atual em que se encontra o Direito Desportivo, se torna comum o uso do termo SAF, que significa Sociedade Anônima do Futebol, um mecanismo que permite que os clubes deixem de ser associações sem fins lucrativos e se tornem empresas.
Em entrevista concedida à Análise Editorial, Marcos Motta, sócio do Bichara e Motta Advogados, escritório especializado em Direito Desportivo especificou como funciona esse novo modelo de negócio do futebol brasileiro: "A Lei da SAF permite que os clubes se transformem em veículos de negócio, ou seja, empresas e a partir disso surge a possibilidade da participação de terceiros no quadro societário do clube".
O especialista aponta o Brasil como um polo extremamente atrativo para os investidores de todo o mundo, principalmente para os que têm a moeda mais forte do que o real. Além desse fator, Marcos aponta outros aspectos que fazem o futebol brasileiro ser visto por todo o mundo como um mercado vantajoso e lucrativo. Um deles é o fato de não haver um controle de quanto o clube arrecada e quanto dessa arrecadação ele pode gastar, algo que acontece na Europa: "Outro ponto positivo: Não há um controle de fairplay financeiro dos clubes, ou seja, se eu quiser comprar um clube hoje e colocar 1 bilhão de dólares, eu posso fazer isso sem nenhuma trava. Desde que eu respeite a legislação cambial, obviamente".
Os Benefícios da SAF: Modernização, Investimentos e Sustentabilidade Financeira
Desde a chegada do futebol no Brasil, os clubes se organizaram como associações civis, entidades privadas sem fins lucrativos formadas por sócios. Esse modelo de governança concede aos associados o poder de eleger representantes para os Conselhos Deliberativo e Fiscal, além do presidente responsável pela administração do clube.
Tendo em vista esse modus operandi, que por diversas vezes se mostrou ultrapassado, o advogado Thiago Bernardo da Silva, sócio do escritório BCMS Advogados apontou em entrevista a Análise Editorial a possibilidade de mudança da forma de como os clubes são governados como uma das vantagens da SAF em relação às associações sem fins lucrativos: "A criação da SAF representou uma mudança significativa nesse cenário. O novo modelo permite que clubes vendam parcial ou totalmente suas operações a empresários, fundos de investimento e até́ mesmo abram capital na Bolsa de Valores - alternativa comum em outros países, mas ainda inexplorada no Brasil.
Outro ponto visto como benéfico para o especialista é o fato das SAFs estarem submetidas a um regime tributário específico, chamado de Tributação Específica do Futebol (TEF). Thiago Bernardo explica como funciona esse regime: "Durante os primeiros cinco anos de existência, a empresa (clube) deve recolher um tributo unificado de até́ 5% sobre suas receitas mensais, com exceção das transferências de atletas. A partir do sexto ano, a alíquota é reduzida para 4%, mas passa a incidir sobre todas as fontes de receita, incluindo a venda de direitos econômicos de jogadores.
Thiago aponta que o modelo SAF introduz a possibilidade de emissão de debêntures do futebol. Esses títulos de dívida servem como fonte de captação de recursos. Torcedores e investidores podem adquirir esses papéis, que garantem uma rentabilidade mínima superior à da caderneta de poupança e permitem o resgate após dois anos. Os valores arrecadados podem ser utilizados pelos clubes-empresa para cobrir despesas operacionais, realizar investimentos ou quitar dívidas.
Comumente as SAFs são adotadas por clubes com dificuldades e em diversas situações até mesmo insolvência financeira, por essa ser a realidade do futebol brasileiro atualmente. "As obrigações financeiras anteriores à adoção do modelo SAF não são automaticamente transferidas à nova empresa. O clube tem a opção de quitar seus débitos por meio do Regime Centralizado de Execuções (RCE) - um mecanismo criado especificamente para viabilizar a reestruturação das dívidas -, ou por meio de processos de recuperação judicial ou extrajudicial. Essa flexibilização permite um planejamento financeiro mais eficiente e reduz o risco de colapso financeiro das agremiações", explicou Thiago.
Com a SAF, o futebol brasileiro entra em uma nova era, aproximando-se dos modelos de gestão adotados internacionalmente. No entanto, o impacto dessa transformação ainda gera debates sobre a sustentabilidade financeira dos clubes e a perda de influência dos sócios nas decisões estratégicas.
Modelos de SAF: Diferentes Estruturas para a Profissionalização do Futebol
Thiago Bernardo também esclareceu quais as maneiras de uma SAF existir. De acordo com o profissional, o clube ou os investidores podem criar a SAF por meio de diferentes modelos jurídicos, conforme a estratégia adotada.
- Transformação: ocorre quando o clube ou a pessoa jurídica original se converte integralmente em uma SAF, assumindo o novo modelo societário sem criar uma entidade paralela.
- Cisão: nesse formato, o clube ou a pessoa jurídica original mantém sua existência, mas transfere todo o patrimônio e as operações relacionadas ao futebol para a SAF, que passa a gerir exclusivamente essa atividade
- Criação independente: uma pessoa física, uma empresa ou um fundo de investimento pode constituir uma SAF, sem vínculo direto com um clube já existente.
Essas possibilidades permitem diferentes arranjos jurídicos e financeiros, garantindo flexibilidade para a transição ao novo modelo e atraindo investidores interessados na profissionalização e expansão do futebol brasileiro.
Perspectivas para as SAFs no Brasil: O Caminho para a Consolidação
O especialista Marcos Motta comentou sobre o futuro das SAFs: "Tivemos a primeira leva das SAFs, e agora, eventualmente, teremos a segunda, com um perfil um pouco diferente. Talvez, grupos comprem SAFs e as vendam para outros grupos. No entanto, tudo vai passar pelo ecossistema do futebol brasileiro, que precisa mudar. O foco deve passar a ser, não só o clube, mas, sim, o produto do futebol brasileiro."
Hoje em dia vive-se uma divisão entre dois grupos comerciais (Libra e LFU) formados por clubes da Série A e Série B do Campeonato Brasileiro, maior produto do futebol brasileiro como indústria. Marcos complementa que é necessário a união dos clubes para a criação de uma liga única, para que haja o crescimento do futebol brasileiro como negócio. "Para que haja uma atração de investidor, eventualmente tem que haver uma criação de uma liga única, porque se trataria de um único guarda-chuva negocial, onde abaixo você tem os clubes, ou seja, o futebol brasileiro sendo organizado por uma liga e os clubes que estão abaixo desse guarda-chuva se beneficiam das mudanças sistêmicas e das mudanças pontuais".
O advogado reforçou que acredita que realmente deve haver uma escala e uma segunda leva robusta de investimentos no Brasil. No entanto, será necessário implementar algumas mudanças. Além disso, ele afirma que maiores investidores precisam de um ecossistema mais claro e monetizável, o que justificaria investimentos mais robustos.
Tendências e Desafios do Direito Desportivo nos Próximos Anos
O Direito Desportivo ainda é um ramo relativamente novo do Direito, em substancial ascensão, suscitando abrangente discussão, em diversas esferas. Os especialistas Marcos Motta e Fabrício Trindade de Sousa citaram que seguem candentes os debates envolvendo as SAF’s e, em paralelo, o fenômeno da recuperação judicial dos clubes de futebol. Eles também enxergam os mercados de apostas e o combate a manipulação de resultados, a criação das Ligas (Libra e Forte Futebol) e os efeitos respectivos, o combate ao racismo, a discriminação e a violência nos estádios, as controvérsias e conflitos de interesse envolvendo os conglomerados proprietários dos clubes (Multi-club Ownership (MCO), licenciamento dos clubes e o fair play financeiro são os temas atuais mais importantes e com grande margem para crescimento nos próximos anos.