Dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam um cenário preocupante na judicialização da saúde no Brasil. De janeiro a maio de 2025 o número de novos processos relacionados a falhas na assistência de saúde foi de 37.170. O volume de ações que aguardam julgamento é bem maior, com 153.993 casos pendentes. No mesmo período, 31.119 processos foram concluídos.
O panorama de 2025 segue uma tendência de alta já observada no ano anterior. O número de processos por falhas assistenciais no país teve um salto impressionante em 2024, chegando a 74.358 casos, o que representa um aumento de 506% comparado aos 45.948 processos registrados em 2023.
Gargalos que viram processos
Desde fevereiro de 2024, o CNJ alterou a terminologia de "erro médico" para "falhas assistenciais de saúde", o que, segundo a instituição, aprimora a captação dos casos e pode, em parte, explicar a variação estatística. Contudo, Eric Nahum, sócio da Lacerda Diniz Machado e eleito Mais Admirado no anuário ANÁLISE ADVOCACIA, ressalta que essa mudança é apenas um dos múltiplos fatores que impulsionam o fenômeno.
Na visão do especialista, que atende às demandas do setor de saúde do escritório, a maior acessibilidade à judicialização e os gargalos estruturais do sistema de saúde contribuem significativamente para o aumento dos litígios, para além do mero crescimento das falhas médicas.
Receituário contra ações judiciais
Para Eric Nahum, a elaboração de protocolos com validade jurídica e viabilidade assistencial é fundamental para que as clínicas consigam mitigar o risco de processos. Ele recomenda que essas instituições sigam alguns requisitos essenciais:
- Base Científica e Regulatória Atualizada: Atuação com diretrizes clínicas e protocolos, como o PNSP/RDC 36/2013, que estejam atualizados e embasados em evidências científicas.
- Juridicidade e Exequibilidade: Comunicação clara, com a definição de atores responsáveis, monitoramento de indicadores, e evidências de treinamento e auditoria.
- Gestão Documental: Controle contínuo dos documentos, incluindo versões, logs, assinaturas eletrônicas e rastreabilidade no Registro Eletrônico de Saúde.
- Consentimento Informado Robusto e Contextual: Comunicação transparente que forneça informações compreensíveis sobre riscos e alternativas, além de um registro tempestivo. Este ponto é reiterado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao tratar do dever de informação e do valor probatório do prontuário.
- Ciclo de Melhoria Contínua: A implementação de um comitê clínico jurídico, com revisão pós incidente e a elaboração de learning reports. Isso torna o protocolo defensável em juízo e aplicável à beira-leito, reduzindo o risco técnico e consumerista.
UTIs de Processos
Segundo o CNJ, em 2024 revela uma disparidade significativa na judicialização da saúde entre os setores público e privado. O sistema público de saúde acumulou 10.881 registros por danos morais e 5.854 por prejuízos financeiros. Em contraste, a rede privada registrou 40.851 processos por danos morais e 16.772 por danos materiais.
Para Henderson Fürst, sócio do Chalfin Goldberg Vainboim Advogados e responsável pela área de direito da saúde do escritório desde 2022, algumas áreas concentram riscos maiores de processos. "Na alta complexidade hospitalar, como UTIs e oncologia, qualquer falha ou atraso gera repercussões graves e judicialização imediata. Na saúde suplementar, as negativas de cobertura certamente continuam sendo uma das principais fontes de litígio, especialmente em terapias de alto custo."
Ele complementa que os procedimentos eletivos e estéticos também testemunharam uma explosão de demandas. Esse aumento é impulsionado pela alta expectativa dos pacientes, pela sensibilidade em relação ao resultado estético e pela baixa regulação do setor.
As áreas de Obstetrícia e Neonatologia também permanecem críticas. Segundo o sócio, isso se deve tanto à carga emocional dos casos quanto à necessidade de documentação minuciosa em tempo real. Na visão de Fürst, essas áreas compartilham um ponto em comum: "todas elas combinam alto impacto clínico e fragilidade na comunicação com o paciente ou familiares."
Existe espaço para melhoria?
Apesar do aumento da judicialização na área da saúde, especialistas avaliam que o desafio vai além do número de processos. Para o sócio do Chalfin Goldberg Vainboim Advogados, banca eleita Mais Admirada no anuário ANÁLISE ADVOCACIA, as soluções para conter a alta de processos no setor passam por medidas que trazem mais clareza e previsibilidade às instituições de saúde. "Hoje, a distinção entre a responsabilidade individual do médico e a responsabilidade institucional do hospital ou clínica é tratada de forma inegavelmente confusa. Isso gera decisões desiguais e insegurança", afirma Fürst.
Segundo o sócio do Chalfin Goldberg Vainboim Advogados, a falta de clareza leva as pessoas a confundirem desfechos negativos, mesmo que sigam protocolos clínicos e a saúde baseada em evidências, com erros assistenciais. A primeira medida, portanto, seria diferenciar essas situações.
Além disso, o advogado também aponta que a criação de padrões de segurança do paciente, aproximando os parâmetros nacionais dos internacionais, e a implementação de indicadores para medir a qualidade assistencial são urgentes. Ele também defende o fortalecimento de mecanismos de mediação e conciliação pré-processual, para que as pessoas possam resolver conflitos antes de entrarem com uma ação judicial. Outro ponto considerado fundamental é o avanço nas regulações para novas tecnologias, que também ganharam espaço na área da saúde.
A solução para a crescente judicialização na saúde, segundo os especialistas consultados, reside na adoção de medidas estruturais. Clareza na definição de responsabilidades, adoção de protocolos clínico-jurídicos e a criação de padrões de segurança do paciente são caminhos para ajudar na redução de litígios. No entanto, enquanto não implementarmos essas medidas, a tendência é que os números continuem a crescer.