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Caso Nestlé: Saiba até onde o compliance pode agir

Casos recentes de relacionamentos amorosos entre executivos e colaboradores reacendem o debate sobre conflitos de interesse e governança corporativa

16 de September 21h40

A Nestlé anunciou, no dia 1º de setembro, a demissão de Laurent Freixe, até então CEO da companhia. A saída do executivo ocorreu após uma investigação interna descobrir que ele mantinha um relacionamento amoroso com uma subordinada, o que contrariava o Código de Conduta Empresarial da empresa.

"A saída de Laurent Freixe se deu após investigação sobre um relacionamento romântico não divulgado com uma subordinada direta. Este relacionamento — confirmado pela investigação — violou o Código de Conduta Empresarial da Nestlé, pois apresentava conflito de interesse. O Sr. Freixe negou consistentemente a existência desse relacionamento ao longo de duas investigações — uma interna e outra externa, com o apoio de consultores independentes", declarou a Nestlé em nota à Análise Editorial.

O episódio ocorreu pouco depois de outro incidente semelhante, também de grande repercussão. Em julho de 2025, durante um show do Coldplay em Boston (EUA), a "câmera do beijo" flagrou o ex-CEO da empresa de tecnologia Astronomer, Andy Byron, abraçado com a então diretora de RH, Kristin Cabot. Com a repercussão negativa do episódio nas redes sociais, ambos acabaram deixando seus respectivos cargos.

Como esses casos são tratados no Brasil?

De acordo com o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, nenhuma empresa pode proibir um relacionamento amoroso entre colegas de trabalho. Segundo a legislação, isso viola a intimidade e a vida privada dos colaboradores, criando um ambiente nebuloso entre o Código de Conduta interno das companhias e a legislação brasileira.

Na visão de Luciano Malara, sócio-fundador e diretor da Missão Compliance, a lei realmente não é específica em relação à proibição desse tipo de relacionamento. Contudo, ele ressalta que, simultaneamente, a legislação brasileira concede ao empregador o direito de romper o contrato de trabalho, sem precisar justificar a decisão. "É uma ruptura de contrato sem justa causa, que obriga a empresa ao pagamento da verba rescisória", complementa.

Para evitar esse tipo de situação, é necessário que a empresa defina claramente o tipo de conduta que deseja adotar. O diretor da Missão Compliance afirma que a empresa deve estabelecer uma política que indique quais relacionamentos representam conflito de interesse, determine como agir nesses casos e explicite a relação quando necessário.

Segundo Malara, isso não viola o direito à intimidade do empregado, já que se insere no chamado poder diretivo do empregador. Esse direito da empresa consiste em estabelecer regras adequadas às atividades profissionais e corporativas. "Então, se o empregador determina como regra que, na mesma área, dois colaboradores não podem manter um relacionamento de forma oculta, e se isso for informado à companhia, caberá a ela avaliar a possibilidade — ou não — de o relacionamento continuar", afirma o sócio-fundador da Missão Compliance.

Quando o compliance deve agir?

Para Luciano Malara, o compliance deve atuar antes que o conflito de interesses se concretize — e não sobre o relacionamento em si. Segundo ele, não adianta esperar que surja um caso para só então implementar uma política ou exigir que os colaboradores adotem uma postura que não estava previamente prevista.

Focar nas regras e na comunicação é o melhor caminho para evitar casos como esses, de acordo com o sócio-fundador da Missão Compliance. Na visão de Malara, a vida pessoal e profissional se entrelaçam, e faz parte da missão dos fomentadores de boas práticas garantir que exista equilíbrio para os colaboradores.

Walmor Viana, especialista em compliance do Kliemann Advocacia, ressalta que o compliance não deve regular a vida privada dos empregados, mas agir quando houver risco material ao negócio ou ao ambiente de trabalho. "Dessa forma, a empresa protege sua imagem e garante um ambiente de trabalho íntegro, sem perder a confiança dos empregados nem transmitir a ideia de controle excessivo", complementa.

Desafios das adaptações legislativas

Esse tipo de diferença entre legislações traz um desafio para as multinacionais, para conciliar seus Códigos de Ética sem entrar em conflito com cada país. Segundo Walmor Viana, a proteção à intimidade está prevista em diversas normas jurídicas. Por isso é esperado que multinacionais preservem os direitos individuais de seus empregados e terceiros em suas políticas.

Walmor destaca que empresas brasileiras e multinacionais costumam ser cuidadosas com a intimidade de seus times. Exemplos dessa prática são os comunicados em casos de ambientes filmados ou os avisos em ligações gravadas. "O importante é a comunicação clara e a transparência, o que costumamos ver nas políticas", complementa o especialista em compliance do Kliemann Advocacia, banca eleita Mais Admirada no anuário ANÁLISE ADVOCACIA.

Exemplos de conduta

Quando uma empresa possui uma política interna de conduta, os executivos em cargos de liderança devem dar o exemplo. Para Luciano Malara, há uma exigência maior sobre profissionais nesse nível.  "Eles são o termômetro da organização, a referência e o modelo de boas práticas. Quando esse modelo adota uma conduta que viola uma regra da empresa, isso é suficiente para justificar a demissão por justa causa."

Contudo, Malara pondera que, caso o executivo tivesse comunicado o relacionamento com a colaboradora, talvez o desfecho fosse outro. "Temos vários casos em que a empresa, junto com os envolvidos, resolve o problema sem precisar desligar ninguém. Agora, quando isso é feito de forma oculta, ainda mais existindo uma política, e principalmente quando se ocupa um cargo alto, aí sim há a possibilidade de justa causa."

Medidas preventivas

Para Walmor Viana, existem mecanismos que podem ser implementados para mitigar riscos de forma equilibrada, sem interferir na vida pessoal dos empregados. Entre eles, destacam-se:

  • Estabelecimento de políticas claras sobre conflitos de interesse e relacionamentos no ambiente de trabalho;
  • Implementação de canais de denúncia independentes (preferencialmente terceirizados), com proteção contra retaliação e procedimentos de apuração com devido processo;
  • Treinamentos periódicos sobre ética, assédio e ambiente de trabalho;
  • Adoção de medidas preventivas e proporcionais, como, no caso de relacionamentos amorosos, orientações claras sobre a possibilidade ou não do vínculo, além da realocação de funções em situações de conflito em potencial.

Walmor conclui que o compliance não deve regular a vida privada dos empregados, mas atuar quando houver riscos materiais ao negócio ou ao ambiente de trabalho. "Dessa forma, a empresa certamente protege sua imagem e garante um ambiente íntegro, sem perder a confiança dos colaboradores nem transmitir a ideia de controle excessivo."

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