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Caso Itaú: Até onde as empresas podem monitorar

Demissão em massa no banco trouxe dúvidas acerca dos limites do monitoramento digital e gerou mobilização jurídica contra práticas consideradas abusivas

25 de September 9h19
(Imagem: Análise Editorial/Reprodução)

No início do mês, o Itaú Unibanco anunciou cerca de mil demissões. O caso gerou debate urgente sobre os limites legais e éticos do monitoramento de trabalhadores pelas empresas. A dispensa em massa, que atingiu principalmente funcionários em regime de home office, levantou questionamentos profundos sobre os métodos de acompanhamento de produtividade utilizados pelo banco e suas implicações para o futuro das relações trabalhistas no país.

Especialistas em direito do trabalho alertam que o monitoramento remoto pode invadir a privacidade dos trabalhadores. Isso ocorre quando ultrapassa os limites definidos pela legislação. Do outro, sindicatos denunciam que o Itaú utilizou métricas pouco transparentes para justificar cortes em um momento de lucros bilionários.

A base legal do monitoramento no Brasil

A legislação trabalhista brasileira estabelece um quadro complexo para o monitoramento de funcionários, fundamentado no poder diretivo do empregador. Henrique Soares Melo, sócio do NHM Advogados, explica que "as empresas, enquanto empregadores que assumem os riscos da atividade econômica, têm direito a estabelecer as regras no meio ambiente de trabalho e acompanhar as atividades de seus empregados" (Art. 2º da CLT).

Complementando esta visão, a advogada trabalhista Ana Claudia Moro, do escritório M.A. Santos, Côrte Real Advogados, destaca que "para qualquer empresa com 20 ou mais empregados, é obrigatório o controle de jornada, mesmo no modelo home office". O artigo 6º da CLT estabelece que não há distinção entre o trabalho realizado presencialmente, no domicílio do empregado ou à distância.

No entanto, este poder diretivo não é absoluto. Como ressalta Melo, "a Constituição assegura a intimidade e a vida privada dos trabalhadores, e a LGPD impõe que qualquer monitoramento seja transparente, proporcional e restrito à finalidade informada". A Justiça do Trabalho admite o monitoramento eletrônico desde que exercido com transparência e observância aos direitos constitucionais de dignidade, intimidade e privacidade.

O que se pode ou não monitorar

A distinção entre monitoramento legítimo e invasão de privacidade é crucial. Segundo Ana Claudia "tudo que se refira exclusivamente ao trabalho pode ser monitorado pelos empregadores, como e-mail corporativo, comunicação interna, acessos aos sistemas, tempo de tela". Henrique reforça que "a empresa pode monitorar os seus equipamentos corporativos pois são verdadeiras ferramentas de trabalho, desde que isso esteja claro e estabelecido com seus empregados".

O advogado também destaca uma dimensão frequentemente negligenciada: "o monitoramento tem a finalidade não apenas de 'controle', mas também de garantia da segurança da informação e auditoria preventiva com relação ao vazamento de informações".

Existem, porém, limites rigorosos. Como alerta Moro "se o monitoramento atingir e-mails, mensagens, documentos pessoais, ou imagens do domicílio do empregado, o empregador violará dispositivos da LGPD e constitucionais". Melo é categórico: "ações que extrapolem o ambiente corporativo serão reputadas como ilegais, como monitoramento de equipamentos particulares ou invasão ao ambiente íntimo".

A LGPD e o consentimento dos trabalhadores

Sobre a necessidade de consentimento explícito, as opiniões dos especialistas revelam nuances importantes. A advogada esclarece que "o consentimento nos moldes da LGPD não se faz necessário, já que se enquadra no cumprimento de obrigação contratual/legal". Contudo, "a ciência prévia e expressa dos empregados sobre como e por que estão sendo monitorados é fundamental".

Melo oferece uma perspectiva complementar: "referido consentimento é medida que se recomenda para que o monitoramento seja válido". Ele destaca que "a LGPD prevê que a empresa não pode simplesmente coletar e analisar informações sem justificar a finalidade, a adequação e a necessidade do tratamento". Por isso, "para fins de integral cumprimento da LGPD, a informação sobre a finalidade do monitoramento e a obtenção de consentimento são imprescindíveis".

Riscos Jurídicos para as Empresas

As consequências para empresas que ultrapassam os limites podem ser severas e multifacetadas. Moro enumera os principais riscos: "reclamações trabalhistas com pedidos de rescisão indireta ou indenização por danos morais, multas por descumprimento de normas coletivas, multas administrativas do Ministério do Trabalho e da ANPD, além de possíveis inquéritos e Ação Civil Pública pela Procuradoria do Trabalho".

Henrique Soares Melo acrescenta que "práticas abusivas podem resultar em multas pela ANPD de até 2% do faturamento da empresa no Brasil e suspensão de sistemas de monitoramento". Também há riscos de "Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo Ministério Público do Trabalho e ações sindicais, incluindo movimentos grevistas".

O posicionamento da jurisprudência

A jurisprudência trabalhista tem evoluído de forma equilibrada. Como observa Ana Claudia, "a jurisprudência vem se consolidando no reconhecimento da validade do monitoramento, mas também punindo os excessos".

Henrique cita precedentes do TST que estabelecem que "o e-mail corporativo constitui ferramenta de trabalho, não sendo possível compará-lo com correspondência individual protegida pelo sigilo". Outro precedente importante determina que é permitido "monitorar e rastrear a atividade do empregado em e-mail corporativo, tanto formal quanto materialmente".

Um desenvolvimento importante é o reconhecimento do "direito à desconexão", com os tribunais mostrando "sensibilidade quanto às fronteiras entre jornada e descanso no trabalho remoto".

Mecanismos de diálogo e soluções

Para evitar conflitos similares, especialistas propõem estratégias específicas. Ana Claudia Moro sugere "transparência e comunicação constante sobre mecanismos de controle e critérios de produtividade, sem medidas lineares", além de "canais de comunicação facilitados para abordar questões do trabalho remoto, como direito à desconexão".

Henrique Soares Melo propõe abordagem mais estruturada: "estabelecimento de regras claras é a base de todo monitoramento". Ele defende "elaboração de políticas de tecnologia da informação, uso de equipamentos e monitoramento" e "treinamentos periódicos sobre segurança de dados e monitoramento".

Ambos enfatizam que "a negociação coletiva através de acordos ou convenções pode estabelecer limites claros para empregados e empregadores".

O futuro das relações de trabalho

O caso Itaú evidencia um desafio crescente: equilibrar produtividade, governança corporativa e confiança mútua na era digital. A tecnologia, que deveria facilitar o trabalho, corre o risco de se tornar instrumento de controle excessivo se implementada sem transparência.

O fato pode representar um marco nas discussões sobre limites do monitoramento de trabalhadores no Brasil. Ele evidencia que, na era do trabalho remoto, as empresas devem equilibrar o direito legítimo de supervisionar com o respeito aos direitos de privacidade e dignidade.

A solução não é proibir o monitoramento, mas criar marcos claros, transparentes e negociados coletivamente, que protejam interesses empresariais e direitos dos trabalhadores. O futuro das relações de trabalho dependerá de como empresas, sindicatos e poder público enfrentarão esses desafios, exigindo boa-fé, transparência e diálogo social.

Ana Claudia MoroHenrique Soares MeloItaú UnibancoM.A. Santos, Côrte Real AdvogadosNHM AdvogadosSindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região