As cobranças de sobrestadia de contêiner constituem instituto amplamente reconhecido no âmbito do comércio internacional marítimo. Resumidamente, os proprietários dos contêineres — majoritariamente os armadores de navios — cobram um valor adicional diário quando ultrapassado o período previamente acordado para uso da unidade, tendo essa cobrança natureza jurídica indenizatória, como compensação por uso excessivo e pelo retardamento na devolução do bem.
A denominação de tais cobranças varia de acordo com o momento da ocorrência. Quando a sobrestadia ocorre antes do embarque, na exportação, é chamada de detention, e, quando ocorre após a chegada no porto de destino, é chamada de demurrage .
Apesar de constituir uma prática de mercado, tal cobrança não possui previsão expressa em legislação federal, tampouco há obrigatoriedade de que tais condições figurem no Conhecimento de Embarque (Bill of Lading), documento responsável por evidenciar o contrato de transporte, bastando que estejam delimitadas nos termos da reserva de embarque, conforme amplamente aceito pelos usos e costumes do direito marítimo internacional, reconhecidos, inclusive, pela jurisprudência pátria .
Em regra, antes do embarque e após o desembarque, os armadores indicam os terminais para entrega dos contêineres cheios ou os depots para devolução dos vazios, que atuam como mandatários dos armadores, atuando em seu nome e vinculados por contratos de prestação de serviços de armazenagem e movimentação.
Nas palavras do doutrinador Ralpho Filho e demonstrando-se a relação havida entre armadores (contratantes) e terminais (contratados), o mandato "é o contrato por meio do qual uma pessoa (mandatário) recebe de outrem (mandante) poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses" .
No entanto, na prática, tem-se observado significativa insegurança jurídica e prejuízos operacionais decorrentes da alegada incapacidade dos terminais para recebimento dos contêineres por superlotação ou indisponibilidade de janelas, situação que acarreta uma reação em cascata prejudicial à cadeia logística internacional.
No período pré-embarque, a responsabilidade pela não entrega dos contêineres em data previamente ajustada muitas vezes decorre de alterações no schedule ou agenda dos armadores, com consequente mudança nas datas acordadas, ou ainda por omissões de navios em determinados portos, acarretando a chamada ‘rolagem da carga’.
Assim, os usuários ou os agentes intermediários acabam sendo onerados por cobranças de sobrestadia indevidas, sem qualquer culpa, em virtude da falta de capacidade dos terminais indicados pelos proprietários dos contêineres.
Diante da ausência de legislação em sentido estrito que regule o tema, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), que admiravelmente adotou uma postura ativa perante as definições de direitos, deveres e responsabilidades dos players da cadeia logística, especialmente dos armadores de navios, terminais alfandegados, agentes intermediários e usuários (importadores e exportadores).
Em 2017, editou a histórica Resolução Normativa nº 18, a primeira a apresentar os intervenientes de uma cadeia logística e suas atribuições. Posteriormente, quatro anos depois, publicou a Resolução Normativa nº 62, uma das normativas mais importantes sobre o tema, pelo aprofundamento no tema da responsabilidade civil aplicado a rotina operacional do comércio exterior no modal marítimo.
Segundo entendimento do ente regulador, os transportadores marítimos de longo curso devem observar permanentemente algumas condições para a prestação de um serviço adequado e eficiente. Dentre elas, a "adoção de procedimentos operacionais que evitem perda, dano e extravio de cargas, minimizando custos a serem suportados pelos usuários" e a "execução diligente de suas atividades operacionais, de modo a não interferir e minimizar a possibilidade de danos ou atrasos nas atividades realizadas por terceiros" .
A norma ainda prevê que "Os transportadores marítimos e os agentes intermediários devem abster-se de práticas lesivas à ordem econômica, aumentar arbitrariamente os lucros, ou exercer de forma abusiva posição dominante" , exatamente o que tem ocorrido nas cobranças ilegais de sobrestadia por razões alheias à vontade dos usuários.
Nos casos em que a ilegalidade se materializar, a ANTAQ atribuiu a responsabilidade integral aos proprietários dos contêineres, nos seguintes termos:
"Art. 21. A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular.
§ 2º A contagem do prazo de livre estadia do contêiner será suspensa em decorrência de:
I - fato imputável diretamente ao próprio transportador marítimo, ao proprietário do contêiner, ou ao depósito de contêineres (depot); ou
II - caso fortuito ou de força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente."
Isto é, caso o contêiner cheio seja entregue no terminal indicado para embarque e, por razões alheias ao seu controle o embarque não ocorrer, o embarcador não poderá ser cobrado por sobrestadia.
Quanto a contagem do prazo de sobrestadia, há previsão de suspensão por fatos imputáveis ao transportador marítimo ou ao depósito de contêineres. Da mesma forma, ocorrências de caso fortuito ou força maior também inviabilizarão a cobrança, caracterizando sua indevida exigência.
Está é a lógica da responsabilidade civil positivada em nosso ordenamento. Inexistindo culpa direta atribuível aos usuários ou aos agentes intermediários pela impossibilidade de entrega do contêiner, seja ele cheio ou vazio, inexiste também o nexo de causalidade, o que, por consequência, afasta o dever de indenizar.
Evidentemente, nos casos em que a cobrança dos valores de sobrestadia se mantém mesmo quando quem deu causa à cobrança foi o próprio armador ou o seu mandatário, as grandes empresas de navegação estão indo de encontro com as normas reguladoras. Se um terminal sem capacidade de recebimento foi indicado, por simples lógica jurídica, não se justifica a cobrança de indenização por uso de diárias adicionais.
Apesar das recentes regulamentações e do entendimento consolidado sobre a matéria nos tribunais brasileiros, os armadores frequentemente mantêm a cobrança de faturas de sobrestadia contra clientes impedidos de devolver os contêineres, gerando litígios prolongados, despesas administrativas e transtornos para os agentes intermediários e usuários, deixando de reconhecer a patente ilegalidade dessas cobranças.
Por vezes, a resposta dos proprietários da unidade de carga consiste em indicar um depot de entrega em outras cidades ou até mesmo em outros estados, o que demonstra seu domínio de mercado e caracteriza uma conduta abusiva. Essa solução, embora frequente, mostra-se totalmente inadequada na maioria dos casos. Isso porque, mesmo quando há a suspensão da cobrança e o redirecionamento do contêiner para outro local pelos armadores, os usuários continuam sendo prejudicados: o contêiner permanece sob sua posse, ocupando espaço na fábrica, exigindo que um motorista fique de prontidão e gerando custos adicionais desnecessários.
Ainda que haja suspensão ou isenção da cobrança, o problema só é parcialmente resolvido, sem alcançar sua integralidade.
O atual cenário revela a urgente necessidade de interpretação mais rigorosa, criteriosa e alinhada com os princípios regulatórios já existentes. A persistência de cobranças de sobrestadia em situações nas quais o próprio armador ou seu representante contribuiu para o inadimplemento da obrigação reforça a assimetria nas relações contratuais do setor.
A ANTAQ tem avançado em suas normativas, mas é fundamental que esse avanço seja acompanhado pela efetiva fiscalização e, sobretudo, pelo reconhecimento do Poder Judiciário quanto à ilegitimidade dessas cobranças, sob pena de perpetuar uma prática que onera indevidamente os usuários e compromete a eficiência da cadeia logística no comércio exterior brasileiro.