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Abertura do mercado brasileiro de resseguros: Uma emenda que deu certo

Por André Tavares, sócio do Tavares & Chacur de Miranda Advogados

5 de October de 2023 11h21

Vista em perspectiva, a abertura do mercado de resseguros mostrou-se um movimento necessário e óbvio de desenvolvimento desse relevante setor econômico no país. Os números apontam um notável crescimento nos negócios de resseguros feitos no Brasil, mesmo sabendo-se que o segmento ainda tem muito que progredir em relação aos mercados europeu e norte-americano. Veja-se, por exemplo, que o mercado brasileiro cresceu, nominalmente, 177,41% no período compreendido entre 2001/20091, e, após a edição da Lei Complementar nº 126, de 15 de janeiro de 2007, esse crescimento persistiu, coroado pela arrecadação, no ano de 2012, de prêmios de resseguro da ordem de US$ 81.390.000.0002. É importante notar que esse valor absoluto de arrecadação praticamente dobrou comparativamente a 2008, quando se alcançou algo em torno de US$ 47.655.000.000.

Mas, em 1988, ano em que foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, esse panorama não era claro, nem certo. Muito pelo contrário, com um acentuado viés nacionalista, a Carta Constitucional manteve o monopólio do setor de resseguros, preservando o status do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) como o de ressegurador monopolista.

Criado em 1939, o IRB teve (e ainda tem) um papel decisivo para o desenvolvimento do mercado de resseguros. O IRB é tradicionalmente formado por profissionais de excelente nível técnico e acompanhou de perto o crescimento, além do seu próprio mercado, do setor de seguros brasileiro. Conhece as peculiaridades das operações locais e focos de interesse dos seguradores. Relaciona-se harmonicamente com os seguradores e resseguradoras, locais e estrangeiros. E ganhou muito em desempenho e eficiência com a sua recentíssima desestatização3.

1 MAURO WESSILEWSKY CAETANO e CARLOS HONORATO TEIXEIRA, Artigo: Perspectivas de Crescimento do Mercado Ressegurador Brasileiro, p. 199, Revista Future (http://revistafuture.org/FSRJ/article/view/71)

2 http://www.tudosobreseguros.org.br/sws/portal/pagina.php?l=267

Veja-se, a propósito, que "O processo de abertura do mercado de resseguro brasileiro foi longo e percorreu várias etapas. Desde a sua criação em 1939, no governo de Getúlio Vargas, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) cumpriu exatamente o seu papel no país. Pode-se afirmar que ele não só viabilizou as operações de resseguros no Brasil como também construiu o mercado primário de seguros à sua volta, o que antes não existia. grandes seguradoras nacionais foram formadas ao longo dos anos e até hoje subsistem que tenham se associado a grupos estrangeiros do setor. (…) Durante a existência monopolista, o IRB aprimorou a sua técnica e desempenhou papel catalizador no mercado, suplantando até mesmo as seguradoras em tecnologia de conhecimento relativas aos diversos contratos ou ramos de seguros." (WALTER A. POLIDO, Artigo: A Abertura do Mercado de Resseguro Brasileiro e as Mudanças nas Relações entre Partes: Segurador e Ressegurador in Seguros e Resseguros Aspectos Técnicos, Jurídicos e Econômicos, Saraiva, Rio de Janeiro, 2010, pp. 212/213 - destacado no original).

O fato, inelutável, é que o modelo de mercado monopolista desgastou-se de forma paulatina e natural, e essa fenomenologia, supõe-se, relaciona-se ao movimento de abertura de fronteiras econômicas, culturais e técnico-científicas de um mundo globalizado, essencialmente iniciado no país na década de 90.

Essa diversidade supranacional, que aproximou comercialmente e financeiramente as mais longínquas nações do globo, também contagiou as operações de resseguro:

"Aliás, não existem muitos monopólios de resseguro no mundo. Até a metade do século XX, ainda havia mais de 20 países como monopólios de resseguro ou em vias de criá-lo. A Rússia e Costa Rica possuíam monopólios de seguro e resseguro. No Chile, no Brasil, na Turquia, no Irã, na Grécia e no Japão existiam empresas estatais que detinham o monopólio da atividade resseguradora. Atualmente, apenas a Costa Rica e a índia ainda restringem as operações de resseguro. Na Costa Rica, o seguro e resseguro estão nas mãos de um segurador estatal; na Índia, a resseguradora estatal (General Insurance Corporation) goza de amplas vantagens na condição de ‘ressegurador nacional preferencial’.

3 "Na edição do Diário Oficial da União (DOU) de 16.09.2013 está publicada a Portaria SUSEP 5525/2013, de 12.09.2013, que concede a autorização definitiva para a transferência de controle acionário do IRB-Brasil Re, no âmbito do processo de desestatização da Companhia. Os novos controladores do IRB-Brasil Re são a União, BB Seguradora, Bradesco Auto Re, Itaú Seguros, Itaú Vida e Previdência e o Fundo de Investimentos em Participações (FIP) Caixa Barcelona, formado pelos principais Fundos de Pensão do País. Portaria publicada hoje concede autorização definitiva para a desestatização do IRB-Brasil Re." (portaria-publicada-hoje-concede-autorizacao-definitiva-para-a-desestatizacao-do-irb-brasil-re)

Durante as últimas décadas, o comércio mundial tornou-se cada vez mais globalizado e a quantidade, dimensão e complexidade dos riscos existentes no mercado aumentaram significativamente. Muitos países dependem de um mercado de resseguros aberto, para valerem-se do efeito da diversificação internacional, da livre concorrência e da transparência dos negócios, assim como da grande variedade de produtos oferecidos. A solidez financeira dos resseguradores, seus conhecimentos e serviços ― especialmente em relação a desenvolvimento de produtos, fixação de preços, subscrição e regulação de sinistros ― foram também determinantes no atual processo de internacionalização do resseguro." (LUIZ BOJUNGA, Contratos de Resseguro, Renovar, Rio de Janeiro, 2009, p. 44)

Parece ser correto entender que o Poder Constituinte ao estabelecer o conjunto de regras e princípios atinentes ao sistema financeiro nacional, que originariamente positivou-se na norma do art. 192 da Constituição Federal, o fez a partir de um viés protetivo, consubstanciado em certa desconfiança à vinda de capital estrangeiro, o que se nota, por exemplo, na redação primitiva do inciso III e a respectiva alínea ‘a’ do art. 192, segundo o qual lei complementar disporia sobre "… as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente… os interesses nacionais.".

O espírito do Constituinte de 1988 pôde ser atestado pela doutrina produzida proximamente àquela época, que, ao comentar o dispositivo do art. 192 em sua redação original, preconizou que "Para conseguir o desenvolvimento nacional equilibrado dentro das bases do sistema financeiro brasileiro, que deverá estar devidamente enquadrado na estrutura econômica, social e cultural do País, é indispensável um sistema tributário adequado e o controle das riquezas nacionais pela própria comunidade." (PINTO FERREIRA, Comentários à Constituição Brasileira, 6º volume, Saraiva, 1994, p. 532).

E essa percepção foi difundida pela melhor doutrina constitucionalista, como se vê de trecho de parecer dado pelo Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO acerca do tema:

"O mercado securitário é parte integrante do sistema financeiro ― o inciso II do mesmo artigo 192 cuida explicitamente dos estabelecimentos de seguros ― e, portanto, está igualmente sujeito ao princípio referido [da soberania nacional]. O compromisso da atividade securitária com o desenvolvimento equilibrado do mercado nacional ainda mais se justifica tendo em conta o papel que desempenha na ordem econômica como um todo. Explica-se.

A mais evidente função do seguro é garantir ao segurado a tranquilidade que deriva da certeza de receber a indenização contratada no caso de sinistro. Nada obstante, o seguro encerra ainda importantes papéis econômicos, a caber: (i) desmobiliza o capital privado que formaria um fundo de reserva para suportar a ocorrência de eventuais danos e (ii) gera importante volume de poupança popular que deve ser aplicada a projetos para o desenvolvimento nacional.

Nesse contexto, o seguro sai da esfera exclusivamente privada para tomar lugar como um importante propulsor do desenvolvimento econômico que haverá, nos termos da Constituição, de ser equilibrado e servir aos interesses da coletividade.

(…)

A relevância institucional da atividade dá à sua regulação e desempenho um papel destacado na promoção e no desenvolvimento equilibrado do mercado nacional. Nesse cenário, o legislador fez algumas opções nítidas para a consecução dos objetivos constitucionais. Dentre elas, a colocação obrigatória no mercado brasileiro de seguros sobre riscos localizados no país, originário de atividades desenvolvidas no território nacional." (Ilegalidade da Contratação de Seguros no Exterior para Riscos Localizados no Brasil. Princípios e Regras Aplicáveis e sua Interpretação in Temas de Direito Constitucional, Tomo II, Renovar, Rio de Janeiro, 2003, pp. 471/473)

O quadro ora descrito mudou com a promulgação da Emenda Constitucional nº 13, de 21 de agosto de 1996. A referida emenda, independentemente de respeitáveis opiniões em contrário, impõe-se, efetivamente, como o marco jurídico para a abertura do mercado de resseguros e a quebra do monopólio do IRB no setor. De caráter supressivo, a inovação constitucional retirou do texto da Carta a expressão "órgão ressegurador oficial", de modo que, com a mudança sutil, estava encerrado o ciclo monopolista do IRB. A ordem jurídica brasileira contemplava, ao menos em tese, o ingresso de resseguradores internacionais e a criação de novos resseguradores brasileiros, a inserirem-se em um modelo de livre concorrência e de benéfica competitividade.

Com efeito, o Poder Constituinte derivado, ao promulgar a Emenda nº 13, relativizou o monopólio do ressegurador até então estatal, promovendo grande avanço. Mas o fez de forma cautelosa. Toda a complexa estrutura normativa a tratar do sistema financeiro nacional permaneceu ainda no texto da Constituição, de modo que a subsunção aos interesses da coletividade e à soberania nacional, bem como a rigidez normativa (apenas lei complementar poderia regulamentar tais matérias), dificultaram, na prática, a abertura do mercado ressegurador em 1999, quando editada a Emenda Constitucional nº 13.

O cuidado em suprir as lacunas do sistema por intermédio de lei complementar é visível na ementa do acórdão proferido no Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao conceder a liminar na ADI nº 2.223, cujo objeto é da declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 9.932/99, que regulamentou a operação e a atividade de resseguros no Brasil, tornando aberto o mercado para a atuação de resseguradores locais, admitidos e eventuais:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA PELO TRIBUNAL. LEI ORDINÁRIA 9932, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1999, QUE DISPÕE ACERCA DA TRANSFERÊNCIA DE ATRIBUIÇÕES DA IRB-BRASIL RESSEGUROS S/A - IRB-BRASIL RE PARA A SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS - SUSEP. VÍCIO FORMAL. LEI COMPLEMENTAR. EFEITOS DA EC 13/96 SOBRE AS ATIVIDADES DE FISCALIZAÇÃO E REGULAÇÃO DO SETOR DE RESSEGUROS.

1. A Emenda Constitucional 13, de 1996, ao suprimir a expressão 1órgão oficial ressegurador’ do inciso II do artigo 192 da Carta Federal, aboliu o monopólio da IRB-Brasil Resseguros S/A - IRB-BRASIL Re.

2. A regulamentação do sistema financeiro nacional, no que concerne à autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão fiscalizador, é matéria reservada à lei complementar.

3. As funções regulatórias e de fiscalização conferidas à IRB - Brasil Resseguros S/A pelo Decreto-lei 73/66, recebido pela Constituição de 1988, não podem ser alteradas por lei ordinária.

4. Entendimento divergente do relator, que apenas suspendia a vigência da expressão ‘incluindo a competência para conceder autorizações’, constante do artigo 1º da Lei 9932/99, por considerar que os demais dispositivos disciplinam matéria típica de lei ordinária. Liminar referendada pelo Pleno para suspender, até o julgamento final desta ação, a eficácia dos artigos 1º e 2º; parágrafo único do artigo 3º; artigos 4º ao 10; e artigo 12, da Lei 9932, de 20 de dezembro de 1999, do Distrito Federal. (ADI 2223 MC, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, j. em 10.10.02, p. DJ 05-12-2003 PP-00018 EMENT VOL-02135-05 PP-00788)

O problema é que, na prática, a atividade de resseguros continuava sendo exclusivamente desempenhada pelo IRB. O malogro da Lei nº 9.932/92 e os próprios entraves do texto constitucional não tornavam o ambiente propício para uma abertura ampla e definitiva no mercado de resseguros. Não é difícil compreender-se que nenhum ressegurador internacional iniciaria as suas atividades no Brasil dentro de um sistema constitucional a determinar, de forma expressa, que a participação do capital estrangeiro nas instituições financeiras ― inclusive as resseguradoras ― visará, primordialmente, aos interesses nacionais. Além, disso, vale lembrar que, á época, o IRB ainda não havia transferidos as funções regulatórias e de fiscalização à SUSEP, sendo certo que essa preponderância sobre os demais resseguradores tornaria a competição desigual.

Nesse sentido, entendeu-se, reconhecidamente, que "…a liberação do mercado ressegurador brasileiro foi delineada de forma a proteger quem decida investir localmente. A manutenção de higidez do sistema financeiro foi um fator relevante para essa escolha, embora pareça que os elementos de maior peso tenham sido a necessidade de valorizar o IRB no momento de sua privatização, bem como o desejo de proteger o mercado local, atrair investimentos para nosso país e evitar a evasão de divisas pela remessa de prêmios a resseguradores estrangeiros." (AMADEU CARVALHAES RIBEIRO, Direito de Seguros, Resseguro, Seguro Direto e Distribuição de Serviços, Atlas, São Paulo, 2006, pp. 48/49).

Defendeu-se, acima, que o marco jurídico de abertura do mercado de resseguros aconteceu com a edição da Emenda Constitucional nº 13. Isso é correto do ponto de vista estritamente jurídico, pois a verdadeira ruptura do regime monopolista adveio com a referida emenda constitucional. Mas o grau de desenvolvimento em que o mercado se encontra hoje e o seu florescimento devem-se, sem sombra de dúvidas, à Emenda Constitucional nº 40, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 29 de maio de 2003.

A Emenda Constitucional nº 40 significou a "… desconstitucionalização do conteúdo básico da matéria referente a todo o sistema financeiro nacional." (ALEXANDRE DE MORAES, Direito Constitucional, Atlas, 18ª ed., 2005, p. 722 - destacado no original). Ou seja, libertou as instituições financeiras (dentre elas, as resseguradoras) das amarras de um complexo de regras de hierarquia constitucional que, com o passar dos anos, distinguiu-se pela natureza extremamente protecionista, atravancando o desenvolvimento dos mais diversos mercados e segmentos econômicos e financeiros.

Mas isso não significa que as matérias relacionadas à operação de resseguros não tenham mais que ser regulamentadas por lei complementar. Inclusive, uma das boas inovações da emenda constitucional foi possibilidade de disciplinarem-se as matérias relacionadas ao sistema financeiro nacional por intermédio de leis complementares específicas para cada setor, o que, até então, não era viável:

"Outra importante previsão foi a expressa determinação de desnecessidade de lei complementar única para disciplinar todo o sistema financeiro nacional.

A nova redação do caput do art. 192 da Constituição Federal, dada pela EC nº 40/03, expressamente, prevê sua regulamentação por leis complementares.

Ressalte-se, porém, que o texto constitucional anterior não previa expressamente a obrigatoriedade da regulamentação do sistema financeiro nacional a ser realizada por uma única e específica lei complementar. A alteração foi realizada para evitar-se futuras contestações jurídicas…" (ALEXANDRE DE MORAES, Constituição Brasileira Interpretada e Legislação Constitucional, Atlas, 8ª ed., 2005, p. 1876 - em itálico no original)

Essa inserção no texto conduz a um ganho óbvio: além do aspecto da clareza, a dirimir dúvida interpretativa, busca a melhor sistematizar as matérias, por especialidade e em observância à melhor técnica jurídica, facilitando o processo legislativo, e tornando mais efetivo e desenvolvimento dos setores econômicos e financeiros do país, pelo ganho de agilidade com a edição de leis complementares próprias a cada matéria, e, portanto, menores em conteúdo e alcance.

Como se vê, foi dificultosa a trajetória de abertura do mercado de resseguros no Brasil. Foram necessárias duas emendas à Constituição para que se alcançasse a efetividade dessa importante iniciativa. A abertura do mercado de resseguros avulta como exemplo de desenvolvimento do país, encarado com franqueza quanto às premências de um texto constitucional que não mais representava os anseios da sociedade brasileira. Isso só se tornou possível em virtude da solidez das instituições brasileiras a partir de 1988, o que só se obtém com respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito.