1. Complexidade Técnica do Contrato de Seguro
Até a edição do Código de Defesa do Consumidor, os contratos de seguro eram frequentemente redigidos em linguagem hermética e com as chamadas "letras miúdas", o que resultava vantajoso para o segurador em eventual embate interpretativo travado com o segurado. Existem regras de hermenêutica que não são de conhecimento do público em geral. E, obviamente, o consumidor não é um especialista na operação do seguro, não logrando, por si só, em argumentar qual a disposição da proposta de seguro que lhe é oferecida que pode vir a desequilibrar a avença em caso de sinistro do interesse segurado.
A Lei nº 8.078, de 11 de agosto de 1990, inaugurou uma nova ótica sobre os vínculos contratuais mantidos entre segurado e segurador, a partir da qual ambos os contraentes nivelam-se para que, nessa relação individualizada, as disparidades técnico-jurídicas possam ser reduzidas em direção a um novo paradigma de equilíbrio de forças. Com esse objetivo, foi editado um novo sistema de regras para nortear a constituição, a execução e a extinção dos contratos de consumo, sendo dever do mercado atuar no sentido de inserir-se nessa realidade.
Desnecessário dizer que o contrato de seguro é um típico contrato de consumo (CDC, art. 3º, §2º). O segurador figura como prestador de serviços, enquadrando-se nas particularidades concernentes à cadeia de consumo.
A melhor doutrina especializada defende que "Os contratos de seguro podem ser revistos para que sejam redigidos de forma mais clara e compreensível, assim como os segurados podem ser instruídos de forma sistemática para que entendam o importante papel que desempenham na relação de consumo, a responsabilidade que possuem juntamente com os seguradores, de agir na relação contratual de forma que sejam sempre respeitados os pressupostos de boa-fé e função social do contrato." (ANGÉLICA CARLINI, "Cadernos de Seguros - Pesquisa", FUNENSEG, Rio de Janeiro, 2006, p. 124).
Conclui no sentido de que "O contrato de seguro não precisa se transformar, necessariamente, em um campo de forças pautado por antagonismos entre seguradores e segurados, porque dessa forma pode perder paulatinamente credibilidade. A construção de uma relação de consumo pautada pela confiança e transparência de parte a parte virá com mudanças na redação dos instrumentos, mas igualmente será fruto de mudanças na forma de tratamento do consumidor, que precisa ser motivado a entender de forma mais clara o seu papel como co-responsável pela relação contratual." (ANGÉLICA CARLINI, op. cit., p. 124).
O problema é que o contrato de seguro representa operação extremamente técnica; realidade que, por muitas vezes, pode vir a materializar-se na forma de uma cláusula de difícil entendimento. As peculiaridades do contrato de seguro tornaram premente a necessidade de uma nova visão que permitisse, antes de tudo, o acesso ao consumidor aos termos e expressões do contrato sem desnaturar a operação do seguro. Com efeito, a par da relação individual instaurada entre segurador e segurado, a interpretação do contrato de seguro deve levar em conta a coletividade que, de forma subjacente, compõe-se no grupo segurado.
2. Adaptação do Mercado Segurador
O intenso movimento de adaptação do mercado segurador não aconteceu do dia para a noite, até mesmo porque a compreensão da efetiva ruptura trazida pelo CDC só veio a ocorrer com o amadurecimento da aplicação das leis de consumo pela sociedade e pelos tribunais da Federação, ao posicionarem-se ante os conflitos daí advindos.
Não é demais lembrar que, até a edição do Código de Defesa do Consumidor, muitas das apólices de seguro ⎯ não por atuação abusiva do segurador, mas pela concepção de que o produto "seguro" é o resultado de uma formulação técnica ⎯ estruturavam-se de forma complexa. Ademais, as seguradoras ainda não se haviam dado conta da necessidade de revisão de suas práticas comerciais.
Contudo, desde a edição do CDC, as sociedades seguradoras, ao contrário, inclusive, de outros setores da economia, enxergaram o Código de Defesa do Consumidor como uma oportunidade para se aproximarem mais dos segurados e ampliarem o grau de penetração de mercado.
Para tanto, realizaram intenso esforço para modificar as práticas de mercado com o envio prévio das condições contratuais juntamente com manuais de esclarecimento e utilização, criação dos SAC´s e posterior implementação das ouvidorias. Assim se fez, sobretudo, porque, "… cabe à seguradora não lançar mão de práticas comerciais questionáveis e repelidas pelo CDC, tais como a propaganda enganosa ou a venda casada de produtos de seguro com produtos bancários (…). Em vez disso, as empresas deveriam empreender esforços com vistas a facilitar a vida do consumidor, tanto no que tange à clareza e simplificação da linguagem contratual, como efetuando investimentos nos serviços de pós-venda, em especial no atendimento ao consumidor, evitando muitos conflitos futuros." (SOLANGE MORAES AFONSO DIAS, "A Implantação de Ouvidorias no Mercado Segurador", FUNENSEG, Rio de Janeiro, 2005, pp. 16/17).
As seguradoras também encetaram ampla revisão das suas apólices, com prioridade para aquelas de maior massificação, tais como as de seguros de automóvel, vida e saúde. Textos foram revistos, novas cláusulas foram introduzidas, outras foram suprimidas, e os termos técnicos, tanto quanto possível, substituídos por expressões de uso comum. O desafio exprimia-se, principalmente, em compreender que "O cuidado que se deve ter na redação das cláusulas contratuais, especialmente das cláusulas contratuais gerais que precedem futuro contrato de adesão, compreende a necessidade de desenvolver-se a redação na linguagem direta, cuja lógica facilita sobremodo sua compreensão. De outra parte, deve-se evitar, tanto quanto possível, a utilização de termos lingüísticos muito elevados, expressões técnicas não usuais e palavras em outros idiomas. Não basta o emprego de termos comuns, a não utilização de termos técnicos e palavras estrangeiras para que seja alcançado o objetivo da norma sob comentário. É preciso que também o sentido das cláusulas seja claro e de fácil compreensão. Do contrário, não haverá exigibilidade do comando emergente dessa cláusula, desonerando-se da obrigação o consumidor." (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN, DANIEL ROBERTO FINK, JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO, KAZUO WATANABE, NELSON NERY JÚNIOR e ZELMO DENARI, "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto", Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2004).
3. Foco de Estudo
Consiste o presente estudo em uma breve análise que se inicia com a vigência do Código de Defesa do Consumidor, para que, a partir dessa perspectiva temporal, possa-se avaliar o que evoluiu em mais de duas décadas de vigência da legislação consumerista em termos de redação e inteligência das cláusulas do contrato de seguro.
Propõe-se que essa reflexão seja ilustrada com a apresentação de alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça, antigos e atuais, concernentes a alguns ramos de seguro, a fim de que se possa ver o que mudou da interpretação que o Judiciário confere acerca dessas mesmas disposições contratuais.
Faz-se necessário um esclarecimento. Com a entrada em vigor do CDC, em 1991, iniciou-se um processo de discussão judicial de seu sentido e alcance. Com alguma perplexidade, o Judiciário começou a interpretar os conceitos de vanguarda da nova lei, e a década de 1990 não foi de intensa produção de acórdãos paradigmáticos no Superior Tribunal de Justiça, relativamente ao contrato de seguro e o Código de defesa do Consumidor. Isso se deve ao seguinte fato: o que foi então decidido em 1º e 2º grau nos Tribunais de Justiça da Federação observou, necessariamente, o trâmite processual ⎯ de anos ⎯ para chegar ao conhecimento das Cortes Superiores.
4. STJ: Primeiros Anos, Exigência de Clareza
No ano de 2001, foi julgado o Resp nº 214.237/RJ pela e. 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, cuja relatoria coube ao Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR. Naquele julgado, definiu-se que, em contrato de seguro saúde, a cláusula que limita o tempo de internação hospitalar foi considerada abusiva "… porque as assertivas sobre a desnecessidade de redigir com destaque a cláusula restritiva, contentando-se com a sua simples inclusão no texto do contrato de adesão, colidem frontalmente com a regra legal expressa no art. 54, par. 4º, citado no r. acórdão e nas razões do recurso especial. Assim, ainda que não fosse o caso de se afastar de pronto pelo seu conteúdo a cláusula limitativa, a desatenção à exigência formal seria por si suficiente para o acolhimento do recurso. Ademais, impor ao aderente a prova da má-fé nas tratativas para a celebração do negócio, além de exigência não prevista em lei, evidencia que se interpreta o contrato a favor do estipulante, e não do aderente, como é de rigor (art. 47 do CDC), e impõe ao autor ônus que dificilmente teria condições de suportar (art. 6º, VIII, do CDC)." (REsp 214.237/RJ, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, e. 3ª Turma, j. em 02.8.01, pub. DJ 27.8.01, p. 341).
O acórdão ⎯ independentemente da questão de fundo concernente à interpretação da abusividade da cláusula ⎯ ressaltou imprecisão objetiva na apólice, relativamente à cobertura que expressamente se exclui: a falta de destaque da cláusula limitativa de risco, como determina o Código de Defesa do Consumidor (CDC, art. 54, §4º).
Em outro recurso especial, o Resp nº 485.760/RJ, julgado no ano de 2003, o segurado de um seguro de vida e acidentes pessoais pleiteava o pagamento da diferença entre o que foi por ele recebido (R$1.800,00) a título de indenização da invalidez parcial por ele comprovadamente sofrida e o limite máximo previsto na apólice destinado à cobertura de invalidez total (R$ 17.999,97).
No acórdão, o Ministro SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA destacou que "… o segurado, no ato da contratação do seguro, recebeu apenas o ‘Certificado Individual’ (fl. 12), cartão-proposta do seguro (fl. 13), que previa o pagamento de indenização global no montante de R$ 17.999,97 (dezessete mil novecentos e noventa e nove reais e noventa e sete centavos), em caso de invalidez total ou parcial por acidente. Dito certificado fazia menção às cláusulas gerais do contrato, que, no entanto, só posteriormente foram encaminhadas ao consumidor. As condições gerais do contrato (fls. 36/54), por sua vez, previam indenização no valor de R$ 1.800,00 (hum mil e oitocentos reais) para o caso do autor. Ainda segundo tal documento, o valor constante no ‘Certificado Individual’ seria o limite da importância segurada, e a indenização a ser realmente paga seria calculada em função de cada caso, tomando como base o grau de invalidez, conforme tabela específica." .
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, condenou a seguradora ao pagamento do capital máximo, independentemente do grau de lesão do segurado. Utilizou o fundamento de que "À luz do Código de Defesa do Consumidor, as informações prestadas ao consumidor devem ser claras e precisas, de modo a possibilitar a liberdade de escolha na contratação de produtos e serviços. Ademais, devem ser redigidas em destaque as cláusulas que importem em exclusão ou restrição de direitos.".
Nesse aresto, prevaleceu a ciência parcial do segurado no momento da contratação, independentemente do valor do pagamento do prêmio e das efetivas condições da apólice. A seguradora, em virtude de falha na prática comercial, consistente no descasamento entre o envio do cartão-proposta e das condições gerais ⎯ que, como sabido, integram-se em instrumento contratual único ⎯, arcou com pagamento que manifestamente não era devido. Veja-se que, aqui, o problema não é a abusividade da cláusula (que espelha fielmente a lógica do seguro de acidentes pessoais), mas a exigência de conhecimento prévio do segurado acerca das cláusulas e condições do seguro.
Essa realidade, inclusive, ficou muito clara no lúcido voto-vista de autoria do Ministro BARROS MONTEIRO. O eminente julgador defendeu que "… nos seguros de acidentes pessoais, é da natureza do contrato a graduação do valor reparatório, que varia segundo a gravidade da lesão. Realmente, a agasalhar-se a pretensão exordial, chegar-se-ia ao absurdo de contemplar-se o segurado com o importe total inserto na apólice quando, na realidade, o seu dano fora de menor gravidade, a ensejar uma indenização menor. Dar-se-ia o denominado ‘enriquecimento sem causa’, que, por sinal, foi objeto de alusão pelo decisório recorrido. Penso, destarte, que, dada a natureza do contrato de seguro e à referência às ‘condições gerais’ a que se reportara o cartão proposta, a diferença pleiteada não se faz devida no caso em exame, não tendo ocorrido aqui a alegada ofensa aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor." (Resp 485.760/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª Turma, j. em 17.6.03, pub. DJ 01.3.04, p. 186).
Acórdãos como os acima referidos foram proferidos em grande quantidade nas 3ª e 4ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça. Mas o mercado, ao longo do tempo, adequou-se ao Código de Defesa do Consumidor no que se refere aos contratos que comercializa, e hoje adota práticas estritas de respeito ao segurado e obediência ao sistema normativo de Proteção ao Consumidor. Essa mudança de atitude foi percebida pelo Judiciário.
Mais recentemente, decisões de excelente conteúdo técnico vêm sendo proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, principalmente no sentido do reconhecimento da validade das cláusulas do contrato de seguro a partir da aplicação, sobre elas, do Código de Defesa do Consumidor.
5. STJ: Paulatina Evolução, Limitações Admitidas
A questão da validade das cláusulas de contrato de seguro saúde voltou a ser discutida em 2006, no AgRg no Resp nº 378.863/SP, sendo relator o Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, se bem que agora a favor das seguradoras. No referido aresto, "O que se está discutindo é a qualidade jurídica de cláusula contratual restringindo a cobertura securitária dos planos de saúde, dele excluindo o transplante de órgãos.". Após detida análise a precedentes anteriores do Superior Tribunal de Justiça (cf. REsp nº 319.707/SP, Rel. p. acórdão Ministro CASTRO FILHO, j. em 07.11.02, pub. DJ de 28.4.03; REsp nº 304.326/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGUI, j. em 24.9.02, pub. DJ de 03.2.03 [remetendo-se ao REsp nº 86.095/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, pub. DJ 22.4.96]; e REsp nº 158.728/RJ, Rel. Ministro MENEZES DIREITO, j. em 16.3.99, pub. DJ de 17.5.99), a 4ª Turma entendeu que "… assim como é lícito ao segurador restringir os riscos assumidos pela apólice, entendo que, sendo clara e de entendimento imediato, não é abusiva a cláusula que exclui da cobertura contratual o transplante de órgãos. Não há como, especificamente neste caso, o Judiciário fincar-se em juízo de íntima convicção para impor às entidades privadas a prestação de serviços expressa e claramente excluídos da cobertura contratual." (AgRg no REsp 378.863/SP, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, 4ª Turma, j. em 21.2.06, pub. DJ 08.5.06, p. 194).
Ainda, colhe-se do Resp nº 988.044/ES, julgado pela e. 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 17.12.09, com a relatoria da eminente Ministra NANCY ANDRIGHI, importante análise acerca da validade das cláusulas de limitação de risco, em apólice de seguro de automóvel:
"Deve-se, admitir, portanto, que a vontade livremente expressa pelas partes na escolha dos riscos cobertos pela apólice revela o ponto ótimo de equilíbrio contratual, abrindo-se exceções para a revisão judicial de tais negócios apenas naquelas circunstâncias específicas em que a autonomia da vontade viu-se maculada, quando há cláusulas defeituosas, práticas comerciais abusivas e eventual má-fé de um das partes contratantes.
Na hipótese dos autos, em que o segurado omitiu circunstância relevante, não se faz presente a necessidade de revisão da cláusula limitativa do seguro, que delimita a localidade de circulação habitual do veículo, pois não se deve impor à seguradora a cobertura em região diversa da contratada, para a qual não se previa, inicialmente, qualquer garantia.
O princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 1443 do CC/16, impõe ao segurado declarar a verdade e não omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na prestação do contrato de seguro.
Com efeito, é com base nas informações prestadas pelo segurado, tal qual a localidade de circulação habitual do veículo, que a seguradora avalia a aceitação dos riscos e arbitra o valor da prestação a ser paga.
Ademais, mesmo que se considere que a mudança da localidade de circulação habitual do veículo foi posterior à celebração do contrato, tal fato deve ser informado à seguradora, pois a boa-fé objetiva deve permanecer em todo o período contratual.
Destarte, é válida a cláusula limitativa do contrato de seguro, que prevê a localidade de circulação habitual do veículo."
Não poderia a Ministra ter sido mais precisa e técnica nos fundamentos de seu voto. O referido entendimento capitaneou o acórdão da 3ª Turma, que, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial "… para reconhecer a validade da cláusula contratual que limita a circulação habitual do veículo em determinada localidade." (Resp 988.044/ES, Rel. Ministra NANCI ANDRIGHI, 3ª Turma, j. em 17.12.09, pub. DJe 02.2.10, edição 510).
6. STJ: Interpretação a partir dos Fundamentos Técnicos
O ano de 2012 vem trazendo importantes avanços para a compreensão do contrato de seguro, no que se refere à interpretação de suas cláusulas à luz do CDC, ao reconhecer-lhes validade a partir de uma análise de seus fundamentos técnicos. Veja-se, por exemplo, que no AgRg no AG nº 1.381.302/DF, julgado pela e 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 13.3.12, o Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO sustentou que, em contrato de seguro saúde, "…a ausência de adaptação do contrato às disposições da Lei nº 9.656/98 é irrelevante ao deslinde da controvérsia que se desenvolveu, precipuamente, na perspectiva da análise do contrato que, nada obstante a incidência da norma consumerista, validamente exclui de sua cobertura a ‘cirurgia ortognática na mandíbula’, bem como o ‘tratamento odontológico, inclusive nos casos de lesões traumáticas buco-dentárias decorrentes de acidente pessoal’." (AgRg no AG nº 1.381.302/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª Turma, j. em 13.3.12, pub. DJe 19.3.12, edição 1011).
A delicada matéria atinente ao seguro saúde comporta uma tensão natural entre o segurado e o segurador, que muitas vezes induz o julgador a decidir a controvérsia a partir de sentimentos metajurídicos, o que não é bom para a segurança das relações. Nesse precedente, a e. 3ª Turma mostrou maturidade ao ater-se à análise da validade da cláusula que exclui cobertura, ante a legislação consumerista, sem resolver a lide por fundamentos outros que os estritamente legalistas.
A e. 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça também criou importante precedente, ao decidir o REsp nº 1.177.479/PR, em sessão realizada em 15.5.12, cuja dinâmica de julgamento vale ser reproduzida.
O Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, Relator originário do feito e que ficou vencido, caracterizou a controvérsia como "… em saber se é devida indenização securitária em razão da perda do bem segurado por apropriação indébita, quando a apólice faz referência a cobertura decorrente de ‘colisão, incêndio, furto e roubo’, conforme explicitado na sentença e no acórdão recorrido.". Segundo o voto do eminente Ministro, "… correto é o entendimento exposto em acórdão paradigma, segundo o qual, se o segurado teve seu patrimônio subtraído por terceiro, é indiferente a qualificação jurídica do tipo penal prevista no contrato de seguro, porquanto o consumidor não é obrigado a conhecer a diferença técnica entre furto, roubo e apropriação indébita, sendo certo que, quando o contrato foi celebrado, o intuito da parte hipossuficiente era se precaver contra a perda do bem em razão de ato criminoso de terceiro.". Desse modo, pronunciou-se pela condenação da seguradora ao pagamento da indenização.
Todavia, o Ministro ANTÔNIO CARLOS FERREIRA inaugurou a divergência. Ele entendeu que foi lícita a atuação da seguradora que "… negou o pagamento da indenização, ao argumento de não ter ocorrido furto ou roubo, mas apropriação indébita, hipótese não coberta pela correspondente apólice. Isso porque o veículo segurado estava na posse de empregada da recorrente, que, após o término da relação de emprego, em virtude de suposta resistência ao pagamento das verbas rescisórias pretendidas, não devolveu o veículo à empresa recorrente. Mesmo após ação de busca e apreensão o bem não foi encontrado.".
Ainda, explicitou o Ministro que, no caso dos autos, "… a recorrente buscou readquirir a posse do bem, inclusive em juízo, mediante infrutífera ação de busca e apreensão do veículo. Assim, a própria recorrente acabou por reconhecer ser a hipótese distinta de um furto ou roubo, situação na qual essa tentativa seria inviável. Ademais, teria sido possível a contratação de seguro específico para tal hipótese de risco (o chamado seguro fidelidade), mediante o pagamento de prêmio em valor correspondente. Assim, considerando a expressa previsão da cláusula contratual sobre os riscos objetos de cobertura, não há como a recorrente afirmar não ter ciência do que estava sendo segurado.".
A conclusão foi a de que "… houve clara especificação de quais riscos estavam cobertos (furto e roubo), dispensando, a meu ver, cláusula de exclusão de determinados riscos. Assim, não há que se cogitar da necessidade de cláusula em destaque, nos termos da legislação consumerista.", razão pela qual considerou lícita a negativa de indenização pela seguradora.
Os Ministros RAUL ARAÚJO, MARIA ISABEL GALLOTTI e MARCOS BUZZI acompanharam a divergência, respectivamente, a partir dos seguintes fundamentos, resumidamente expostos: (a) a cobertura ao evento objeto da lide renderia ensejo a fraudes por parte dos segurados, atraídos, diante de dificuldades financeiras, a fazer dação em pagamento de dívidas trabalhistas e, depois, cobrar das seguradoras os valores correspondentes aos veículos que tivessem sido supostamente "apropriados indevidamente" por seus empregados; (b) haveria expressivo aumento do risco se se aplicasse a cobertura estipulada apenas para furto ou roubo na hipótese de não devolução do bem por pessoa a quem fora confiado pelo proprietário para uso habitual, em face da relação de emprego anteriormente mantida; e (c) no caso concreto, existe diferença visível entre os crimes acobertados pela cláusula contratual, e aquele que retirou o bem da esfera jurídica do segurado, tipificado na apropriação indébita.
É interessante notar que no julgamento do recurso houve discordância expressa entre o Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO e o MINISTRO ANTÔNIO CARLOS FERREIRA no que concerne ao cabimento do REsp nº 917.356/ES (e. 3ª Turma, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ acórdão Ministro ARI PARGENDLER, j. em 17.6.08. pub. Em 22.8.08) à hipótese dos autos. Segundo o voto do Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, aquele paradigma não seria aplicável porque lá "… o veículo foi subtraído em razão de ter o proprietário o emprestado a um amigo, o qual, depois de uma longa viagem, não o restituiu ao dono." Por outro lado, o Ministro ANTÔNIO CARLOS FERREIRA entendeu existir similitude entre o REsp nº 917.356/ES e o presente feito. Invocando os fundamentos técnicos trazidos pelo Ministro ARI PERGENDLER, afirmou que "… Uma interpretação que autorizasse o entendimento de que todo seguro de automóvel embute o seguro de fidelidade levaria, evidentemente, as seguradoras a aumentarem o respectivo prêmio nos seguros futuros, em prejuízo dos consumidores que não emprestam seus automóveis, ou só os emprestam a pessoas confiáveis…" (Resp 1.177.479/PR, Rel. Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ acórdão Ministro ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, 4ª Turma, j. em 15.5.12, pub. DJe 19.6.12, edição 1072, p. 683).
O julgamento ora retratado demonstra uma notável evolução do Tribunal na aplicação do Código de Defesa do Consumidor sobre o contrato de seguro, na medida em que, sem deixar de observar essa legislação, prestigiou a estrutura técnico-jurídica do seguro, sem fechar os olhos para a realidade que permeia o cotidiano do homem médio.
Ressalte-se, por oportuno, que a análise de outros precedentes do Superior Tribunal de Justiça e a franca discussão a respeito de sua similitude com o caso em julgamento ⎯ o que, inclusive, foi objeto de divergência entre os julgadores ⎯ é salutar e demonstra uma verdadeira preocupação com a coerência e com harmonia dos julgados dessa Corte. O Superior Tribunal de Justiça está reescrevendo o Direito do Seguro com seriedade e proficiência.
7. Conclusão
Como se vê, foi longo o caminho percorrido entre a edição do Código de Defesa do Consumidor, sua efetiva implementação pela sociedade e discussão dos tribunais, e a recentes interpretações das 3ª e 4ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça consentâneas com os fundamentos técnico-jurídicos do contrato de seguro.
Este fenômeno é resultado de um processo iniciado nos anos 90, com a percepção das seguradoras da importância do CDC para as suas atividades, com a consequente adoção de medidas para alterar o quadro de pouca importância do setor no conjunto da economia brasileira. O resultado dessas medidas, que ainda não se encerraram, tem merecido o reconhecimento pelos tribunais e, principalmente, pelo Superior Tribunal de Justiça.
O visível crescimento do segmento securitário intensificará os debates em torno das questões relacionadas ao seguro e à legislação consumerista, o que tornará ainda mais indispensável o franco diálogo entre todas as partes envolvidas. Nesse contexto, avulta o papel do Poder Judiciário, que, com o desenvolvimento do país, está cada vez mais presente no deslinde das controvérsias, impondo-se como fundamental, nesse contexto, a função do Superior Tribunal de Justiça em consolidar a inteireza positiva do direito brasileiro.