São quase 10 anos desde quando a Lei 12.965, conhecida como Marco Civil da Internet, veio para mostrar definitivamente que a internet não é uma terra sem lei no país. Desde então, foram muitos os avanços tecnológicos, que provocaram intensas mudanças nas relações, nos meios de produzir e nos parâmetros que tínhamos ao conviver com a nova realidade digital, especialmente por meio das mídias sociais.
Diante de transformações aceleradas e inovadoras, começaram a surgir lacunas resultantes do fenômeno de rápida obsolescência legislativa. Isso porque o Direito precisa conseguir acompanhar a velocidade das mudanças causadas pela inovação tecnológica sob pena de não garantir mais segurança jurídica-social. Tanto que os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli convocaram uma audiência pública para debater as regras do MCI, realizada nesta semana em Brasília, na qual pude contribuir como uma das participantes.
É natural que de tempos em tempos o Estado analise os novos riscos para trazer soluções que possam proteger o cidadão, garantir a livre concorrência e fomentar o desenvolvimento econômico-social sustentável. O STF é o protetor da constituição, e por isso atua para garantir os direitos fundamentais. Nesta conjuntura, inclui encontrar meios de harmonizar a liberdade de expressão, sem ferir a dignidade humana.
Ou seja, envolve tanto aplicar a lei já existente, como preencher lacunas enquanto não é atualizada pelo legislativo. Afinal, que internet queremos para o futuro?
Com toda certeza um dos pilares principais é o da transparência. Vivemos a "Economia do Tempo", onde os ganhos das empresas são resultado do tempo gasto pelo usuários, assim como pelo que produzem e consomem nessas redes. Parte de um arranjo pensado para beneficiar essas companhias a partir do engajamento de quem navega e gasta seu tempo ali. Quanto mais tempo, mais monetização.
Foi assim que saímos do Estágio 1 da Internet, da busca orgânica ou natural para chegar no Estágio 3 em que estamos hoje, da sugestão de conteúdos com uso maciço de algoritmos. Neste fase as pessoas não querem mais atrair atenção de outras pessoas, mas sim agradar o algoritmo. Mas como fazer para o algoritmo destacar você na imensidão da internet?
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Basta fazer uma busca na internet e a resposta é unânime: usar as hashtags. Serve para organizar a informação e direcionar o tráfego para a postagem. Tem a função de sinalizar que uma publicação pertence a um tópico específico e reúne todas as publicações em torno daquele tópico. Ou seja, ajuda a viralizar e a monetizar.
O mesmo ocorre com fake news. Dizer que a Sophia Loren morreu gera audiência e, consequentemente, lucro. Assim como um perfil falso deveria ser removido imediatamente, uma notícia falsa também não deveria continuar publicada. Não é um debate da liberdade de expressão, e sim uma questão coibir a monetização em cima do dano do outro.
A questão é, se todo negócio tem seu "risco do próprio negócio", qual o risco de se ter um negócio que usa conteúdo de terceiro para monetizar? Qual é o risco das plataformas? Que obrigações e responsabilidades devem ter quando há um ilícito? Qual diligência e velocidade devem agir para mitigar danos a terceiros, para proteger seus próprios usuários?
Infelizmente, o Marco Civil não previu padrões de tempo limite de resposta, ou seja, de prazo razoável, que é uma melhor prática importantíssima. Já a Lei do SAC e a LGPD previram, o que mostra que há uma evolução legislativa. Tem que haver definição clara do limite de tempo de atendimento de requisição de usuário e/ou de autoridade judicial. E isso é algo padronizado, e não que cada plataforma responde do seu jeito, no prazo que quer. Pois isso gera danos à vítima. O tempo de um lado monetiza, do outro lado pode causar danos.
Importante observar que somente no Tribunal de Justiça de São Paulo, dos 290 julgados de remoção de conteúdo no último ano, em 180 dos casos (62%) a resposta da plataforma foi a impossibilidade de cumprimento da obrigação por limitação técnica. Em alguns casos, mesmo que tenha havido a aplicação de multa, por serem valores irrisórios, acabam sendo estímulo para a demora ou não atendimento da determinação de retirada.
Logo, acabamos com consequências indesejadas que talvez ninguém pudesse imaginar ou sequer prever na época da criação do MCI. Isso porque o art. 19 acabou afastando a responsabilidade pelo risco do próprio negócio no caso das plataformas. Passou a ter um efeito devastador sobre o direito constitucional de proteção da dignidade humana na medida que privilegiou o direito à liberdade, e não considerou medidas de equilíbrio entre esses direitos, sobretudo ao demarcar a limitação técnica do serviço como salvo-conduto.
Por isso que durante minha fala no STF fiz questão de salientar que ao não prever claramente o prazo razoável de atendimento do titular e da ordem judicial, por desbalancear o equilíbrio necessário entre direitos fundamentais, por estimular ganho econômico em cima da monetização da demora, contrariando preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Declaração Americana dos Direitos Humanos, o art. 19 do MCI resta em desconformidade legal. Liberdade de expressão não pode se confundir com liberdade de agressão!
*Patricia Peck, CEO e sócia do Peck Advogados, conselheira titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e professora da ESPM