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Parcelamento tributário e suspensão da pretensão punitiva: reflexos processuais

Por Filipe Knaak Sodré, sócio do escritório Peter Filho, Sodré, Rebouças e Sardenberg Advocacia

13 de October de 2022 19h33

Em caso de oferecimento de denúncia por crime tributário já objeto de parcelamento que esteja sendo adimplido, haverá patente ausência de justa causa para a ação penal.

Já faz quase duas décadas desde a edição da primeira lei federal pós-constituição que concedia efeitos penais ao pagamento ou parcelamento do tributo objeto de denúncia por crime fiscal: era a lei 9.249/95, que estipulava em seu art. 34 a extinção da punibilidade dos crimes definidos na lei 8.137/90 quando o agente promovia o pagamento da dívida antes do recebimento da denúncia.

De lá para cá, houve uma sucessão de leis regulando esta mesma matéria - 9.430/96, 9.964/00, 10.684/03, 11.941/09 e 12.382/11 - criando um verdadeiro labirinto por onde o operador deve se conduzir, seguindo a orientação de que os efeitos a serem gerados em eventual parcelamento dependem da data na qual ocorreu a adesão ao programa (STJ, HC 206.986/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi).

Para os efeitos deste artigo, vamos nos concentrar na última delas, a lei 12.382/11, que, dando nova redação ao art. 83 da lei 9.430, passou a definir, entre outras disposições, que:

"[...] é suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput [crimes tributários], durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal."

A principal inovação desta norma, sem dúvidas, é que o efeito de suspensão da pretensão punitiva estatal só ocorre se a efetiva entrada do contribuinte no programa de parcelamento tiver sucedido antes do recebimento da denúncia criminal, eliminando a normativa anterior, que permitia tal efeito a qualquer tempo, antes do trânsito em julgado da ação penal.

O que parece ter ficado menos claro é o efeito prático processual da suspensão da pretensão punitiva do Estado em momento anterior ao recebimento da denúncia, que parece ainda causar problemas ao aplicador da lei. Isto porque não é raro, passados mais de dez anos da edição desta norma, ainda encontrar casos em que o magistrado, ao receber a denúncia por crime tributário, verifica que o denunciado já está parcelando os débitos, e então suspende o andamento da ação penal.

Veja-se por exemplo o seguinte julgado:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇAO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E SUPRESSAO DE CONTRIBUIÇAO SOCIAL. ART. 168-A, § 1º, I, E ART. 337-A, I, C/C ART. 69 E 71, TODOS DO CÓDIGO PENAL. PARCELAMENTO DO DÉBITO TRIBUTÁRIO. DECISAO QUE REJEITOU A DENÚNCIA. APLICAÇAO ANÁLOGA DA SÚMULA VINCULANTE 24. REFORMA QUE SE IMPÕE. HIPÓTESE DE SUSPENSAO DA PRETENSAO PUNITIVA E DO CURSO DA PRESCRIÇAO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO.I. Constituído definitivamente o débito tributário, não há que se falar em atipicidade da conduta, por aplicação da Súmula Vinculante 24.II. O parcelamento do débito tributário, antes de fundamento à extinção da punibilidade ou atipicidade da conduta, é causa de suspensão da pretensão punitiva processo e do curso da prescrição, consoante o disposto no art. 83, § 3º, da lei 9.430/96, que se repete no art. 68, caput e parágrafo único, da lei 11.941/09.III. Assim, não há que se falar em rejeição da denúncia, mas sim na suspensão da pretensão punitiva e do curso da prescrição, enquanto perdurar em vigor o parcelamento da dívida a que se noticia a peça acusatória. IV. Recurso em sentido estrito provido, para reformar a decisão e, pelos fundamentos suso expendidos, suspender o curso da ação. (TRF-5, 0002613-89.2013.4.05.8300, Rel. Des. Federal Ivan Lira de Carvalho, DJ 9 de junho de 2015)

A respeitável decisão é a manifestação da seguinte ideia: é o pagamento integral do débito que tem o condão de extinguir a punibilidade do crime, enquanto o parcelamento "apenas" suspende a pretensão punitiva estatal. Logo, o parcelamento impede o prosseguimento da ação e a prolação de sentença, mas sua instauração permanece imaculada, pois só o pagamento do imposto poderia impedir seu início.

Com o devido respeito, este pensamento poderia até ser válido para os casos, possíveis antes da edição da lei 12.382/11 - em que o parcelamento do débito ocorria após o início da ação penal - mas não é mais aplicável perante a norma atual, que, diante de parcelamento realizado em data anterior, faz necessária a rejeição da denúncia pelo magistrado.

Isto por uma razão muito simples: se no momento do ajuizamento da inicial acusatória a pretensão punitiva estatal encontra-se suspensa - isto é, não gerando quaisquer efeitos - segue-se que o Estado não tem pretensão alguma a deduzir em juízo, e, portanto, não existe direito de ação penal.

Bem lembra Aury Lopes Jr. que a pretensão processual "é, no processo penal, uma declaração petitória de que existe o direito potestativo de acusar e que procede a aplicação do poder punitivo estatal."1 Ora, se concretamente falta ao Estado a possibilidade de exercer o poder punitivo, não se pode iniciar a ação penal, vez que não há nenhuma possibilidade de se submeter o acusado a alguma pena.

Da mesma forma é o pensamento de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, explicando que a suspensão da punibilidade afasta (...) a punibilidade concreta e, por evidente, não há ação, razão pela qual, se exercida a ação, deverá ser rejeitada." 2

Assim, quando ainda era possível obter a suspensão da pretensão punitiva por adesão a parcelamento após o recebimento da denúncia, o magistrado corretamente deveria suspender o curso da ação penal, visto que, quando da propositura, o Estado possuía o jus puniendi e, consequentemente, pretensão legítima à condenação e aplicação de lei penal, tratando-se o recebimento da denúncia de ato jurídico perfeito. Totalmente diferente da normativa atual que, limitando os efeitos penais do parcelamento tributário à sua adesão em data anterior ao recebimento da inicial, afasta de plano a justa causa para ação penal.

Logo, após a celebração do acordo de parcelamento entre o Fisco e o contribuinte, caso seja recebida denúncia, há nulidade desde o início da ação penal, vez que a suspensão da pretensão punitiva implica a impossibilidade de se realizarem quaisquer medidas de persecução penal contra o indivíduo, impedindo inclusive a investigação pré-processual, caso ainda não tenha sido instaurada.

Já é possível visualizar, aliás, este entendimento em julgados da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS.  DIREITO PENAL.  CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA.  LEI Nº 10.684/03. IPI. PARCELAMENTO DOS DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. SUSPENSÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO. INQUÉRITO POLICIAL. ALCANCE. ORDEM CONCEDIDA. 1. A adesão ao Programa de Recuperação Fiscal - REFIS, com o parcelamento de débitos oriundos da falta de recolhimento de  Imposto  sobre Produtos  Industrializados  - IPI,  suspende  a  punibilidade  do  crime  tipificado  no art. 2º da lei 8.137/90 (lei 10.684/03, art. 9º, caput). 2. A suspensão da pretensão punitiva do Estado, enquanto efeito da inclusão da pessoa jurídica ao regime de parcelamento -  REFIS,  atribuído  pelas  leis 9.964/00  e  10.684/03,  alcança  a  própria  fase  procedimental-administrativa da persecutio criminis, até porque produz também a suspensão do prazo prescricional. 3. Ordem concedida (STJ; HC 29.745-SP; Sexta turma; Rel. Min. Hamilton Carvalhido; DJ 19/4/05)

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, I E II, DA LEI 8.137/90. REFIS (LEI 9.964/00). PAES (LEI 10.864/03). AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL E SUSPENSÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL CRIMINAL DURANTE O PERÍODO DE INCLUSÃO NOS PROGRAMAS DE PARCELAMENTO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Os atos processuais praticados durante o período em que a sociedade esteve regularmente inserida no Paes e no Refis não são válidos, haja vista a suspensão da pretensão punitiva estatal. 2. Os arts. 15, § 1º, da lei 9.964/00 (Refis) e 9º, § 1º, da lei 10.864/03 (Paes) estabelecem a suspensão do prazo prescricional criminal durante o período de suspensão da pretensão punitiva estatal pela adesão aos programas de parcelamentos do crédito tributário. 3. O crime do art. 1º, I e II, da lei 8.137/90 prevê pena máxima de 5 anos de reclusão e o prazo prescricional é de 12 anos, conforme o art. 109, III, do Código Penal. 4. No caso, a constituição definitiva dos créditos tributários ocorreu em 20/11/00, 22/11/00, 1º/12/00. Desconsiderado o prazo em que esteve suspensa a prescrição criminal (7 anos, 11 meses e 20 dias), não houve o transcurso de 12 anos. 5. Agravo regimental não provido. (STJ; AgRg-AREsp 811.524; Proc. 2015/0284784-6; SP; Sexta Turma; Rel. Min. Rogério Schietti Cruz; DJE 15/12/17)

Desta forma, em caso de oferecimento de denúncia por crime tributário já objeto de parcelamento que esteja sendo adimplido, haverá patente ausência de justa causa para a ação penal, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal, devendo o magistrado promover sua rejeição. Caso contrário, deverá a parte manejar Habeas Corpus para trancar o processo, nos termos do art. 648, I, do Código de Processo Penal.

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1 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 155.

2 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Da diferença entre ação e processo: nulidade do processo decorrente do recebimento de denúncia em caso de parcelamento do crédito nos crimes contra a ordem tributária; parecer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 16, 73, p. 316-336, jul./ago.. 2008, p. 333-335. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=68860. Acesso em: 20 jul. 2022.

Artigo publicado originalmente no Portal Migalhas