A utilização distorcida do sistema judicial, conhecida como litigância abusiva, tem ganhado relevância crescente nas discussões acadêmicas e institucionais sobre o avanço da judicialização no Brasil. Essa prática, marcada pelo emprego intencional e desleal dos mecanismos processuais para objetivos contrários à boa-fé, vem sendo reconhecida como um dos fatores que contribuem para aprofundar a crise estrutural vivenciada pelo Poder Judiciário.
Litigar, no sentido mais nobre, é exercer o direito de ação para resolver conflitos de forma civilizada e justa. Mas quando esse direito é exercido com objetivos escusos — como retardar decisões, pressionar adversários ou apenas sobrecarregar o Judiciário — o processo deixa de ser ferramenta de justiça e passa a ser um instrumento de abuso.
O problema está longe de ser pontual. Trata-se de uma prática sistêmica e crescente, com efeitos diretos sobre a qualidade e a velocidade da prestação jurisdicional. Em 2023, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil registrou 84 milhões de processos em tramitação, dos quais 35,3 milhões foram iniciados apenas naquele ano — o maior número da série histórica. E isso em um dos sistemas judiciários mais produtivos do mundo.
Não é, portanto, apenas um problema de desempenho. É, antes de tudo, um problema de demanda.
Quais são as formas mais comuns de litigância abusiva?
A litigância frívola, por exemplo, ocorre quando a parte propõe ações sem base legal mínima, apenas para testar a sorte ou tentar forçar um acordo. Já a litigância desnecessária envolve ações que poderiam ser resolvidas por outros meios, mas que acabam sendo levadas aos tribunais devido à facilidade e ao baixo custo. E a mais grave, a predatória, caracteriza-se pela captação abusiva e até ilegal de clientes, com o ajuizamento massivo de processos idênticos ou sem substância real.
Todas essas práticas contribuem para um sistema mais lento, mais caro e menos acessível — especialmente para quem realmente precisa da Justiça.
Como o Judiciário está reagindo?
O CNJ tem se movimentado. Três medidas recentes merecem destaque: a Diretriz Estratégica n.º 7/2023, voltada ao monitoramento e identificação de padrões abusivos; a Diretriz n.º 6/2024, que propõe uma abordagem institucional integrada e preventiva; e a Recomendação n.º 159/2024, que define os contornos técnicos e conceituais da litigância abusiva e propõe medidas concretas para enfrentá-la.
Essas diretrizes mostram maturidade institucional. Contudo, sua efetividade depende da atuação conjunta de magistrados, advogados, procuradores, servidores e da própria sociedade. É necessário promover uma cultura de responsabilidade no uso do processo judicial.
Litigar é um direito — mas não é um salvo-conduto para distorcer a Justiça em benefício próprio. Quando o sistema é utilizado como ferramenta de chantagem, de atraso ou de intimidação, todos perdem: perde o Judiciário, perde o Estado, perde o cidadão comum que aguarda por uma resposta justa.
Combater a litigância abusiva é, antes de tudo, preservar a integridade da Justiça. E isso exige não apenas normas, mas consciência ética, compromisso institucional e ação coordenada.
Guilherme da Costa Ferreira Pignaneli é sócio no escritório Ernesto Borges Advogados, atua na área de Legal Operation. Autor do livro "Análise Econômica da Litigância". Graduado pela PUC-PR Especialização LLM em Direito Empresarial FGV/RIO; Mestre em Direito Econômico e Socioambiental PUC/PR.
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