A Inteligência Artificial (IA) deixou de ser uma promessa futurista para se tornar parte integrante da agenda estratégica de escritórios de advocacia, departamentos jurídicos e tribunais ao redor do mundo. Contudo, à medida que sua presença cresce, cresce também a necessidade de um olhar crítico e realista sobre suas reais capacidades, limitações e o papel do advogado nesse novo cenário. O entusiasmo generalizado pela automação jurídica esbarra em um paradoxo que muitos profissionais começam a perceber: a tecnologia, por si só, não é suficiente.
O discurso dominante no mercado é o da substituição: IA como ferramenta para eliminar etapas, departamentos e até pessoas. Promessas de ganhos de produtividade e redução de custos têm atraído a atenção de escritórios de todos os portes. Porém, experiências recentes — em setores diversos — revelam que a aplicação indiscriminada da IA, sem um entendimento profundo de seu funcionamento e limitações, pode gerar mais problemas do que soluções.
Diversas empresas já enfrentaram desafios significativos. A empresa de entregas britânica DPD teve de desativar seu chatbot após ele ser manipulado para criticar a própria marca com linguagem imprópria [1]. Em outro caso emblemático, uma concessionária da Chevrolet na Califórnia viu seu assistente virtual, baseado em IA, concordar com a venda de um veículo de US$ 76 mil por apenas US$ 1, após o cliente reescrever as instruções do sistema [2]. No setor de fast-food, redes como McDonald's e Taco Bell abandonaram testes com IA nos drive-thrus após episódios de pedidos absurdos e falhas de compreensão [3].
Esses incidentes revelam que os erros não decorrem apenas de falhas técnicas esporádicas, mas sim de limitações estruturais da própria tecnologia. Fenômenos como "alucinação" — em que o sistema inventa informações com aparente convicção — são inerentes à arquitetura probabilística dos modelos de linguagem [4]. Para o Direito, campo onde a precisão factual é inegociável, essas falhas podem se traduzir em riscos concretos. O caso do advogado de Nova York, multado por protocolar uma petição com jurisprudência fictícia gerada por IA, é um exemplo real e preocupante.
Além disso, pesquisas revelam que a substituição de profissionais humanos por IA, em muitos casos, leva a uma queda na qualidade dos serviços prestados e à insatisfação dos clientes. Um estudo do MIT e da Universidade de Stanford mostrou que, embora agentes de call center com suporte de IA tenham aumentado sua produtividade em 14%, houve também queda na satisfação do cliente [5]. E mais: uma pesquisa da Capterra apontou que 63% dos líderes que implementaram IA em substituição a pessoas se arrependeram da decisão, sobretudo pela perda de conhecimento institucional e pela dificuldade de personalização [6].
Esse cenário evidencia que a IA, apesar de poderosa, não é uma solução mágica — e tampouco é neutra. Seu uso exige um reposicionamento estratégico: não como substituto, mas como copiloto do profissional jurídico. A proposta mais promissora é o modelo colaborativo, o chamado Human-in-the-Loop, no qual a IA é integrada aos fluxos de trabalho, mas com revisão, direção e controle humanos. Esse modelo permite acelerar tarefas repetitivas, como leitura de jurisprudência ou redação preliminar de peças, mas garante que o raciocínio jurídico, o julgamento ético e a sensibilidade humana permaneçam centrais.
Além disso, é necessário reconhecer que o mercado jurídico é alvo de um marketing agressivo por parte de empresas de tecnologia, que prometem produtividade extrema e plataformas "tudo em um". Muitas dessas soluções exploram a assimetria de informação tecnológica existente entre advogados e desenvolvedores, entregando produtos genéricos que não se adaptam às peculiaridades da prática jurídica. O risco é que escritórios apostem em promessas, sem colher resultados.
Portanto, é urgente que a advocacia se aproprie da IA — não como substituto do advogado, mas como extensão de sua inteligência. Isso exigirá um salto no conhecimento dos profissionais, tanto técnico quanto estratégico, e uma postura crítica diante das soluções oferecidas. Os escritórios que souberem interpretar esse movimento, integrar a IA com responsabilidade e manter o ser humano no centro do processo estarão um passo à frente — não por terem automatizado tudo, mas por terem compreendido que o futuro da advocacia é, acima de tudo, humano.
Elias Correa da Silva Junior é advogado sênior de Arystóbulo Freitas Advogados. Graduado em direito pela Fundação Getúlio Vargas.
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